Geral

O RIGOR DO OLHAR FOTOGRÁFICO

Per­correr as cerca de 170 fo­to­gra­fias de Edu­ardo Ga­geiro ex­postas na Cor­do­aria Na­ci­onal é re­vi­sitar Por­tugal das úl­timas sete dé­cadas. De um Por­tugal ver­gado a uma per­sis­tente mi­séria, es­ma­gado pela brutal re­pressão da di­ta­dura sa­la­za­rista-fas­cista do Es­tado Novo, ao Por­tugal var­rido pelo vento da li­ber­dade que a Re­vo­lução do 25 de Abril de­sen­ca­deou, ao Por­tugal dos dias de hoje – a úl­tima fo­to­grafia é da ma­ni­fes­tação po­pular co­me­mo­ra­tiva da Re­vo­lução em 2023.

Por­tugal mos­trado fo­to­grafia a fo­to­grafia nos seus su­cessos po­lí­ticos, so­ciais e cul­tu­rais, da dé­cada de 1950 até 2023. Um re­gisto do tra­balho nas fá­bricas, no campo, na cons­trução civil; da emi­gração, da re­pressão po­li­cial do fas­cismo do Es­tado Novo; das ma­ni­fes­ta­ções po­pu­lares, dos su­cessos da re­vo­lução; dos eventos re­li­gi­osos, mas também dos bas­ti­dores da po­lí­tica a que se adi­ci­o­naram fo­to­gra­fias de per­so­na­li­dades vá­rias.

Pode-se talvez des­co­brir um ponto de vi­ragem no olhar do fo­tó­grafo na­quela fo­to­grafia icó­nica de um sol­dado a re­tirar uma gi­gan­tesca foto de Sa­lazar de uma pa­rede na sede da PIDE. É uma fo­to­grafia de um ex­tremo poder sim­bó­lico su­bli­nhado pelo rigor do en­qua­dra­mento e qua­li­dade que são ima­gens de marca de Edu­ardo Ga­geiro.

Pode-se es­pe­cular se de­pois dessa foto o olhar do fo­tó­grafo não se terá li­ber­tado na ale­gria que se pode des­co­brir em todos nos se­quentes re­gistos fo­to­grá­ficos dos acon­te­ci­mentos do dia 25 de Abril e dias se­guintes, em con­tra­ponto com as fotos dos anos an­te­ri­ores em que as di­fi­cul­dades, as ca­rên­cias, as hu­mi­lha­ções, as di­fe­renças so­ciais são bem vi­sí­veis e bem do­cu­men­tadas. Entre o pas­sado, que ainda é pró­ximo, e o pre­sente ac­tual as di­fe­renças são muitas, ainda que as in­jus­tiças se man­te­nham e Edu­ardo Ga­geiro a elas é sen­sível, não fica in­di­fe­rente, in­siste em do­cu­mentá-las como um acto de ci­da­dania, re­gis­tando-as para a his­tória, para me­mória ac­tual e fu­tura, para que sejam um re­lato vivo que nunca fi­cará apri­si­o­nado num álbum de fo­to­gra­fias, será sempre uma ce­le­bração da vida e da Re­vo­lução que rompeu com aquele pas­sado de mi­sé­rias e opressão.

Para as ge­ra­ções que eram adultas no 25 de Abril, esta ex­po­sição é uma ex­tra­or­di­nária ce­le­bração. Para as ge­ra­ções que nas­ceram de­pois de 1974, é o des­co­brir uma re­a­li­dade na sua ru­deza, do des­pertar e ex­plodir das ale­grias e es­pe­ranças que não vi­veram. Dadas as cir­cuns­tân­cias ac­tuais, esta exposição não é um ana­cro­nismo nem um re­gisto pas­sivo, so­bre­tudo quando di­reitos po­lí­ticos, eco­nó­micos e so­ciais estão a ser co­lo­cados em questão num con­texto de per­sis­tentes de­si­gual­dades em que nada se re­pe­tirá mas po­derá ser vi­vido de forma di­versa mas igual­mente per­versa. A sua re­le­vância e ac­tu­a­li­dade é exac­ta­mente essa.

Factum é uma ex­po­sição que deve ser vi­si­tada como uma viva lição de his­tória dos úl­timos se­tenta e cinco anos, que se cruza com as vir­tudes do ta­lento do olhar fo­to­grá­fico de Edu­ardo Ga­geiro com toda a sua força e be­leza

Standard
Geral

CICLONES , ANTICICLONES

Nuvens, Teresa Dias Coelho, óleo sobre tela, 2000

«Há um grito de mudança grande (…) as pessoas votaram a dizer isto: estamos fartos de politiquices e queremos políticas de futuro». Dona Cláudia Azevedo rejubila por assistir finalmente à plena rentabilização do “perdócio” investido pelo seu papá na comunicação social. Tinha sempre dado retorno, nunca como o alcançado desta vez. Os apotegmas da Dona Cláudia são mais esclarecedores que os milhares de caracteres e espaços, os milhares de minutos aplicados nos variados media, redes sociais incluídas, que procuram explicar canhestramente o triunfo da direita e extrema direita nas últimas eleições, muito resultantes da sua paciente acção durante anos silenciando tudo o que poderia colidir com esse trabalho de sapa da democracia, mesmo a mais formal, à espreita de uma oportunidade até que por fim um surdo golpe de estado iluminou o túnel onde colocavam as pedras de mais uns previsíveis anos. Os oligarcas que os controlam esperam retirar, a curto e médio prazo, os benefícios dos muitos milhares de euros aplicados. Respiram fundo com as «políticas de futuro» que os seus cães de guarda pistaram e vão continuar a sustentar e que os seus mandatários governantes irão implementar. Há que libertar Azevedos, Amorins & Companhia de se andar a meter as mãos nos seus alforges para lhes retirar uns trocos que se esvaem em serviços sociais, um luxo que não se deve exigir aos milionários que têm muitos outros luxos para satisfazer. Há que acabar de vez com o estado social um empecilho do empreendidorismo, ainda que numa primeira fase se distribuam algumas benesses para abrir as portas do radioso futuro em que tudo o que resta será privatizado ou entregue a parcerias público-privadas. Percebe-se o frenesim centrado nas aritméticas e geometrias variáveis sequentes aos resultados eleitorais, as suas consequências nas acelerações ou desacelerações das «políticas de futuro». São vagamente enunciadas razões para este fogo soprado pela direita, pelas direitas das mais clássicas às mais extremas. Para a eclosão desse júbilo da direita traduzido m votos, há razões económicas, há razões fundadas nas falências sentidas em serviços essenciais da saúde ao ensino, há uma generalizada desconfiança instalada nos serviços públicos, tudo matérias que vicejam nas floreadas notícias adubadas pela comunicação social do estado e privada onde, em esmagadora maioria, pontifica o circo que alberga dos intelectuais orgânicos aos arlequins de direita fartamente financiados que, com as suas artimanhas, potenciam descontentamentos, alimentam populismos. Paralelamente lapida-se a deseducação, ilude-se a realidade, promove-se o parasitismo nas inúmeras horas televisivas em que peroram gouchas, cristinas, júlias, claúdios, alcatifando a miséria cultural que empobrece e embota consciências. Correntes que confluem para a pobreza económica, cultural e moral da democracia transformada em mercado político. É a actual praga política, cultural e social que emerge das derivas económicas, políticas erradas para enfrentar à inflação importada, a especulação imobiliária, a mitigação da subida insensata da taxa de juro, o desinvestimento ou investimento ferreamente controlado no SNS, no ensino, nos rendimentos dos trabalhadores, reformados e pensionistas centrando a sua preocupação na dívida pública para onde canalizam os excedentes orçamentais, para aí apoiar as grandes empresas capitalistas. Refira-se o exemplo da Dona Claúdia Azevedo, cujos honorários (1) em 2023 eram 85 vezes mais que os salários médios dos trabalhadores do grupo Sonae, que o Estado socorreu (?) subsidiando a Sonae em 450 mil euros para apoio ao pagamento dos salários mínimos da empresa quando o salário mínimo nacional foi fixado em 820 euros. Não é suficiente, a sua insatisfação é grande pelo que reclama «políticas de futuro».

A situação por cá vivida não é muito diversa da que progressivamente está em crescendo na Europa, como o confirmam os resultados nas urnas em países como a Dinamarca, Hungria, Áustria, Finlândia, Holanda, Bélgica, França, Itália ou Espanha, a dar vitórias à direita e extrema-direita ou a ganharem terreno, ocupam mesmo lugares na governação, antecipando o que acabou por ocorrer em Portugal. A antropologia burguesa vai sendo deglutida pela antropologia neo-fascista. São as metamorfoses sequenciais do capitalismo, do liberalismo clássico, ao neoliberalismo, ao neofascismo, imposto pelas exigências e urgências de o salvar das sucessivas e cada vez mais fundas crises.

Como se chegou à situação actual? Como perceber esta pandemia civilizacional que todos, de modos diversos mesmo opostos, acabam por reconhecer? Esta onda de direita e extrema-direita invade sem excepções toda a Europa, o sistema neoliberal, em particular o vigente na União Europeia (UE) é a sua causa. A maior ou menor resistência da esquerda está cercada e não mobilizará uma alternativa sem um projecto global de desenvolvimento que confronte e ponha em causa o sistema neoliberal instalado, consolidado desde que Jacques Delors o planeou, estruturando as traições das terceiras vias sociais-democratas, com o mercado único, a moeda única, uma política potencialmente única que se estabilizou nos anos 90. Se o modelo social europeu já era desestimulado, sempre minado pela Comissão Europeia e pelo BCE, com o pretexto da guerra da Ucrânia está a ser completamente desmantelado.

É nesta Europa, em que o frágil estado social está a ser substituído pelo robusto estado de guerra, o que evidentemente não consta directamente em nenhum programa eleitoral mesmo quando encapotadamente o façam preconizando um substancial aumento das despesas com armamento, que as direitas vão abrindo caminho com bastante desembaraço como provavelmente as próximas eleições para o Parlamento Europeu irão comprovar.

Este estado de sítio agrava-se quando há partidos ditos de esquerda que proclamam oxímoros como os da direita democrática para justificarem a sua disposição para capitularem, subscrevendo mesmo as políticas atlantistas mais agressivas de que é exemplo paradigmático os Verdes alemães.

Por cá a primeira linha é galhardamente ocupada pelo Livre, esse partido de esquerda invertebrada que defende essa Europa, que está disposto a todas as cedências desde que delas extraia dividendos materiais e imateriais, o que faz utilizando com habilidade uma linguagem polidamente manhosa para subverter todos os princípios que alardeia defender a começar pela soberania nacional totalmente incompatível com a Europa que, com unhas e dentes, defendem os Co-Porta Vozes do Grupo de Contacto do Livre (até essas designações são de uma bufonearia rasteira!). Qual soberania nacional quando deixámos de ter soberania monetária e orçamental? Nada trava essa rapaziada vendida à UE e aos seus instrumentos: Acto Único Europeu, Tratado de Maastricht, Tratado de Amesterdão, Tratado de Nice, que subscreve a transformação da Agenda de Lisboa num programa ultraliberal e o Tratado de Lisboa, o Pacto de Estabilidade e Crescimento, o Acordo de Schengen, o TTIP. Gente que está de acordo com a ausência de harmonização fiscal e dos direitos sociais na UE. Com o aumento da percentagem do PIB em despesas para a defesa, almejando por um forte e bem armado exército europeu. Com os dribles às políticas verdes para acalmar os agricultores da UE e porque de facto o capitalismo nunca foi verde e as políticas verdes só o são enquanto bom negócio. A subserviência dessa gente aos ditames mais conservadoras de Bruxelas é indignante. Aldrabões de alto calibre travestidos de esquerda quando o querem todos bem sabemos ou deviamos saber o que é, pelo que sempre que se ouve Rui Tavares ecoa a Carta ao Gonelha escrita por Luiz Pacheco.(2) As barganhas correm sem freio pelo Livre, são as traves mestras das suas intervenções dessa esquerda fofinha, bem comportada tão do agrado das direitas que os usa como pisa papéis de fina porcelana para que os seus decretos e despachos que favorecem o grande capital não voem empurrados pelos ventos da história. Têm excelente companhia e respaldo na direita incrustada no Partido Socialista para descanso e repouso das políticas mais reaccionárias.

Do lado dos bárbaros vão-se tecendo as teias de aranha dos entendimentos. As premências de meter as mãos no pote, de distribuir o seu conteúdo atrasam a sua feitura. Depois de sairem debaixo das saias rodadas do PSD e CDS saltaram para as arenas sequiosos de golpearem fundo as conquistas da Revolução de Abril, apesar de viradas do avesso por dezenas de anos de governações de direita protagonizados pelo PS, PSD, CDS, sozinhos ou coligados. Nas últimas eleições o Chega conquistou mais de um milhão do votos, tornou-se na terceira força política com expressiva representação na Assembleia da República. Um partido que à mingua de quadros gravita à volta de um “gauleiter” que é o político português mais desenvergonhado e mentiroso, de que se poderia pensar não ser possível ter existência. Existe, tem êxito e goza de tempos de antena e páginas na comunicação social escrita que lhe conferem um brutal protagonismo com a dupla vantagem de estar sempre presente e não ser desmentido por maiores e mais indubitáveis imposturas que bolse. É um partido ultra-reaccionário, saudoso da ditadura salazarista fascista, de uma sociedade securitária, do passado colonial que elogia. Está contra qualquer réstea de progressismo social. É a favor da xenofobia, da discriminação racial, contra todos os direitos sociais em particular os que favoreçam as mulheres, são misóginos, machistas, homofóbicos. O pior da natureza humana estaciona nesse partido que engana os mais vulneráveis ao seu discurso em que vocifera contra o sistema porque quer impor a ditadura pós-moderna dos novos fascistas que pretextam ser democratas, modelo Meloni a fazer caminho. O Chega desenvolve actividade política aproveitando-se das fraquezas e falhas do sistema democrático e dos muitos portugueses sem qualquer espécie de valores, a começar pelos mais básicos direitos humanos. Ventura está bem consciente dessa situação e do que está a fazer, explora todo o terreno abusando dos descontentamentos, muitos deles justos, que vende amalgamados com os que inventa, como qualquer bom vendilhão de banha da cobra que trata todas as doenças ou louro prensado em vez de haxixe. Mergulha de cabeça no grupo muito alargado de portugueses que acredita que há um sistema que beneficia sempre os mesmos e os prejudica, os que se movimentam nas portas giratórias entre o poder económico e o político, a elite corrupta que deve ser derrubada. O êxito do Ventura é ser o maior vigarista político e intelectual, exímio nas formulações primárias e nos apelos sanguinários que excitam esse mundo cão. Êxito que os ludíbrios, as insídias da comunicação social e os seus agentes abastecem, engordando o monstro.

As farândolas do Chega têm a vantagem de dar espaço para a Iniciativa Liberal (IL) se passear com ademanes democráticos, exibindo-se como pessoas cosmopolitas, bem apessoadas, bem perfumadas, com estilo nas suas vestimentas modernaças, fascistas que fazem o contraponto aos grunhos “cheganos”. Há que ler o seu programa, os textos publicados pelos seus fundadores em jornais ditos económicos e de negócios, os estudos produzidos pelo Instituto +Liberdade, para se verificar que os objectivos até são mais sinistros que os do Chega. Distintos seguidores de Hayek, Friedman, Stigler e demais tropa de choque dos Chicago Boys, nalguns assomos de maior clareza, elogiam o Chile de Pinochet e as suas políticas económicas. O objectivo último da IL é privatizar tudo, mesmo o Estado, porque como escreveu o nosso Nobel da Literatura «aí se encontra a salvação do mundo… / e já agora, privatize-se também / a puta que os pariu a todos». (3)

Com o cacharolete político saído das últimas eleições o país está aparentemente ingovernável a acreditar no «não, é não» de Montenegro em relação ao Chega, de que, por enquanto, se desconhece a elasticidade. Com a direita e extrema-direita amplamente maioritárias a vida da esquerda, das esquerdas, mesmo que com as máximas reservas aí se inclua um Livre predisposto a todas as perfídias, mesmo que algumas ponham a falácia da sua imagem de esquerda em causa, encontrando aliados na direita nada desprezível cristalizada no PS, a esquerda, as esquerdas para enfrentarem as ameaçadoras vagas de direita nos seus diversos formatos, vai ter tarefas difíceis, exigentes, até sofisticadas para ultrapassar os tempos próximos propícios aos bem pagos bufarinheiros e calhordas de direita, alguns travestidos de falsa seriedade intelectual, que pululam e contaminam os órgãos de comunicação social com as suas intrigalhadas a intoxicar a opinião pública. Há uma questão central que tem que ser enfrentada que é a da União Europeia, o seu enviesamento neoliberal, omnipresente nas suas constituições informais e formais, que são reconhecidamente aliadas das direitas, aqui e em toda a UE, com todas as péssimas consequências para a economia política, com as privatizações dos sectores estratégicos que deveriam ser detidos pelos Estados, a austeridade nos seus diversos gradientes, o euro imune a qualquer transformação. Nessas áreas sensíveis e essenciais para o progresso político, económico e social, os entendimentos à esquerda são complicados mas necessários mesmo que em formatos dessemelhantes.

(1) Remuneração da presidente da Comissão Executiva (CEO) da Sonae subiu de 1.239.200 euros em 2020 para 1.607.600 euros em 2021. Em 2022, Cláudia Azevedo recebeu quase 515 mil euros de remuneração fixa, 544 mil euros de prémios de curto prazo (pelo desempenho da Sonae em 2021) e outros 544 mil euros de prémios de médio prazo. Acrescem despesas de representação, cartões de crédito, seguros de saúde, etc.

(1) Luiz Pacheco, Carta a Gonelha, Contraponto 1977

(2) José Saramago, Cadernos de Lanzarote – Diário III, Editorial Caminho, 1996.

Standard
Geral

DE OLHOS BEM ABERTOS

Saul Steinberg, A Aventura da Linha

A trivialidade dos comentários à situação decorrente das últimas eleições registam a viragem à direita que eclodiu sem atentarem em muitos nos seus aspectos e factos mais inquietantes, que não são conjunturais mas estruturais. O mais desassossegante é a forte emergência da direita que irrompeu numa esquerda oportunista, sem princípios nem qualquer resquício de ética. Uma esquerda bem falante, sempre pronta a dialogar a todos os azimutes para travestir a sua disposição para as mais miseráveis cedências que adubem o seu vicejar no pântano democrático. Depois de uns iniciais cambaleantes passos aí a temos impante com um crescimento eleitoral significativo, percentualmente é mesmo o maior crescimento eleitoral, pronta a amancebar-se com a esquerda ou com a direita o que proclama com a maior desfaçatez. O Livre é mesmo o mais conturbante sinal da viragem à direita que ontem Portugal viveu. A maior subversão da esquerda e não foram poucas as realizadas e tentadas depois do 25 de Abril. É o confrangedor triunfo da traição e dos traidores da esquerda, mesmo das esquerdas. Esta é provavelmente a nota que mais deve ser sublinhada por afectar substancialmente as lutas que se perfilam contra as direitas.

As outra realidade é a brutal emergência dos populismos, em que um é muito celebrado e o outro está, por enquanto, praticamente ocultado. O Portugal profundo, utilize-se o facilitismo desta classificação, finalmente emergiu depois do caminho das pedras que desde a Revolução dos Cravos percorreu, escondido debaixo das rodadas saias da direita do PSD, CDS & Más Companhias em que com uma mão votava e com a outra atirava bombas. O Portugal que suportou uma das mais longevas ditaduras não desapareceu de um dia para o outro. Pacientemente foi estendendo a sua teia de aranha beneficiando das aleivosias que os governos pós-25 de Novembro foram acumulando cumprindo o objectivo de corroerem os partidos e as organizações de classe dos trabalhadores, de neutralizarem a luta de classes, para salvarem o capitalismo das suas crises em que sequencialmente se vai decompondo, do liberalismo clássico, ao neoliberalismo e ao nacional socialismo. Cada uma destas metamorfoses está em linha com as exigências do momento, como se pode verificar em todo o mundo e em particular na Europa. Para as sustentar os seus ideólogos ao serviço das oligarquias assumiram os comandos dos sectores do audiovisual, da moda, dos tempos livres sobretudo através das televisões, das rádios, da imprensa escrita das redes sociais que promovem activamente uma ideologia aparentemente diversa mas que não perde o norte do mesmo objectivo, o seu objectivo de sempre. Observem-se não só os programas informativos, em que as vozes consequentes de esquerda são uma raridade cada vez mais rara, passe o pleonasmo, mas todos os outros que ruidosamente invadem o quotidiano. Há uma antropologia burguesa que tende para uma antropologia néo-fascista, em que os novos fascistas esmurram as mesas das tabernas ou se perfumam com fragrâncias democráticas, e a oposição tendencialmente se acantona em espontaneismos gruposculares das chamadas lutas fracturantes. Este é o caldo de cultura que faz progredir o populismo fascizante do Chega, a serpente que parte a casca do ovo chocado num ninho gémeo ao da IL onde repousa o outro que continua, com grandes esperanças, a ser acalantado. Acriticamente os invertebrados democratas aceitam frivolamente essa realidade como a normalidade dos sistemas democráticos pelo que de facto a ela nunca se opuseram de forma consequente. A questão nuclear é que para eles a igualdade não é substantiva, não significa nenhuma igualdade real.

O outro populismo emergente foi atirado para debaixo dos tapetes com o argumento falacioso que o súbito crescimento do ADN se devia a muitos eleitores o confundirem nos boletins de voto com a AD, o que até proporcionou que os partidos integrantes da AD aproveitassem essa similitude para fazerem propaganda eleitoral quando isso não era permitido, com total ausência de escrúpulos, o que é natural por ser algo que atropelam de forma contumaz. Provável mas muito marginalmente isso pode ter acontecido. O que torna o êxito, porque de êxito se trata, da ADN preocupante é a sua ligação às igrejas evangélicas importadas do Brasil. Há que estar atento a essa realidade, até pela convergência objectiva entre esses populismos, ferrugem que degrada mesmo a democracia formal.

Todos bem sabemos que há sempre alguém que resiste. A grande dificuldade, até dramática dificuldade, é romper o cerco agressivo à esquerda, às esquerdas consequentes, a que sabem depois de centenas de anos de luta que nenhuma realidade por mais consistente e hegemónica que se apresente é definitiva. Há que enfrentar os tempos mais próximos de olhos bem abertos, sem cedências de princípios.

Standard
Geral

Não Passarão!!!

Cavalaria Vermelha, Malevitch 1919

A vigarice intelectual é um pântano onde vicejam os direitinhas de vários matizes. Todos os dias há sempre uma declaração em que relampejam os redobres em que essa gente incorre. Na AD são muitos os concorrentes que esclarecem o que o seu programa oculta. Das ressurreições da múmia paralítica Cavaco ao Cherne conservado em fénico, o desfile acaba por ser imparável, as latas de tinta verde só pontualmente distraem as atenções. O Chega é por demais previsível nas diárias cambras do seu gauleiter a vender gato por lebre. A IL entalada entre estas duas bancas bem se esforça por vender as suas contrafacções. Numa das últimas pregações, o seu decomposto presidente mostra os dentes salivando com «a possibilidade de uma guerra na Europa» para questionar se o PS coloca a possibilidade de acordos com o PCP «por ser um partido contra a NATO e próximo de Putin». O PCP que sempre lutou pela paz é, e muito bem, contra a NATO, essa aliança ao serviço do imperialismo dos EUA que está a corroer e a destruir a Europa que hipocritamente diz proteger. É atentar para o quadro recessivo que progressivamente a está a paralisar por via das cedências da Ursula & Companhia às imposições dos neocons norte-americanos. Quanto a Putin, é a IL que preconiza políticas sociais e económicas próximas do presidente da Rússia, um país capitalista. É a IL que, tal como a AD e o Chega, se deixados à solta, gostariam de impor em Portugal uma ditadura ao serviço dos oligarcas, mimetizando à sua escala e à escala do país periférico que somos, Putin. São estes espécimes farsantes, cada cor seu paladar, saldando produtos similares que só se distinguem nas embalagens, que no dia 10 de Março se propõem regredir na medida do possível até antes do 25 de Abril. Não passarão!

Todas as reações:

32Jose Sanches Ramos, João Pina e 30 outras pessoas

Standard
Geral

A MELHOR POLÍTICA É UM BOM NEGÓCIO

desenho de Saul Steinberg publicado no New Yorker, novembro 1960

As últimas e incendiárias declarações de Trump, quando diz que até aconselharia a Rússia a invadir ou fazer «o que raio quisesse» aos aliados que não gastassem 2% em defesa, colocaram em polvorosa dirigentes e comentadores políticos europeus. Por cá, a cacofonia dos nossos dirigentes e comentadores políticos acertou o passo com eles. Os democratas norte-americanos acusam-no de ser o mais anti-americano dos presidentes e candidatos a presidentes dos EUA, de se vergar aos interesses do Kremlin. Faltou muito pouco para o acusarem de ter desistido do excepcionalismo norte-americano que o fez, nos últimos séculos, promover por todo o mundo guerras, golpes de estado, revoluções coloridas, a panóplia imperialista que desde a sua fundação pôs em marcha o que mais se acentuou quando, depois da II Grande Guerra Mundial, beneficiou largamente do desfazer dos impérios coloniais europeus.

De facto, Donald Trump engrossou a voz num comício na Carolina do Sul, dizendo que iria «encorajar a Rússia a atacar qualquer nação da NATO que não cumprisse o objetivo de gastar 2% do Produto Interno Bruto (PIB) na defesa. Está a apontar para 19 dos 31 países que integram a NATO sem cumprirem esse rácio. Garante a esses países que «não, não vos protegeria. Na verdade, encorajá-los-ia (a Rússia) a fazer o que lhes apetecer. Têm de pagar. Têm de pagar as vossas contas». Acreditará Trump que a Rússia ficou estimulada a invadir esses países? Isso quererá dizer que Trump é um aliado secreto de Putin, como rapidamente circulou nos media e nas redes sociais da propaganda imperialista? As primeiras reacções russas foram  ouvir essas declarações sem surpresa, com indiferença de quem está habituado a assistir a encenações desse jaez.

Há que lembrar que, quando foi pela primeira vez candidato e depois eleito presidente, Trump tinha feito idêntico pronunciamento logo criticado duramente por Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, que pós-eleições foi dos primeiros a ir ao beija-mão na Casa Branca. Espera-se que a cena se repita se os dois reocuparem os cargos que na altura exerciam.

Trump é um político sui generis pela imprevisibilidade que o faz saltar fora dos circuitos mais formatados da política tradicional. Tem os truques dos populistas com todo o fogo de artifício anti-sistema quando estão bem incrustados num sistema que consolida o neoliberalismo, beneficiando os ricos cada vez mais ricos. É um negociante parafascista agarrado à máquina de calcular dos negócios. Quando faz esses bombásticos anúncios espera cobrar dividendos tanto interna como externamente, explorando o estado de sítio que se vive e a bem visível ebulição geoestratégica.

O auge da propaganda nos areópagos europeus é papaguear uma suposta convergência Trump-Putin esquecendo-se, ou melhor, fingindo cinicamente esquecer-se que foi Trump quem rasgou os tratados entre os EUA e a União Soviética que limitavam a proliferação das armas nucleares, dos mísseis balísticos, do controlo de armamentos, atirou para o lixo os acordos com o Irão que limitavam a sua capacidade nuclear, promoveu os chamados acordos de Abraão que consolidavam a posição de Israel no Médio Oriente, mais pôs em práticas comerciais contra a China e que, como o faz novamente hoje, chantageou com algum êxito os seus aliados da NATO para que gastassem 2% do PIB em defesa, o que reduzia os investimentos norte-americanos com a aliança.

O que Trump pretendia, e de algum modo conseguiu, foi na política externa novamente ameaçar a Federação Russa e países que lhe são próximos, compelindo-os a aumentarem despesas com o armamento, internamente redirigindo as poupanças com as contribuições para a NATO para investimentos direccionados para o complexo militar-industrial-tecnológico norte-americano. Espera que esse influentíssimo conglomerado o prefira aos democratas. Sabe, até bem demais, que essa gente vai dando suporte tanto a democratas como republicanos, mudando de canto nos combates de wrestling que estes encenam, apoiando conforme as circunstâncias uns ou outros em função dos prometidos sucessos económicos. Cotejem-se -se as contribuições para as campanhas eleitorais nos últimos decénios e a coincidência entre os eleitos e o volume desses aportes monetários. 

Esses incendiários pregões dirigem-se mais para o interior dos EUA que para o exterior, pouco se preocupando com o efeito do seu ribombar na Europa que se arrasta numa crise económica por cega vassalagem de que os principais beneficiários são os norte-americanos. Democratas e republicanos estão alinhados com os princípios de política externa definida pelos straussianos, sintetizados por Wolfowitz, que preconizam o enfraquecimento da União Europeia quando hipoteticamente se poderia perfilar como concorrente dos interesses dos EUA. Quer é ser ouvido, como o tinha feito anteriormente quando concorreu com Hillary Clinton, pela média e pequena burguesia, pelos negros e hispânicos cada vez mais empurrados para os limites de sobrevivência pelas políticas económicas dos democratas, políticas que Michael Hudson e Radhika Desai escalpelizam e classificam como de «apartheid económico» num bem documentado texto.  (1)

Donald Trump, como bom populista, explora esse mal-estar generalizado da sociedade norte-americana aprontando-se para cavar um fosso ainda maior entre os super-ricos, os remediados e os pobres, acenando com medidas de incentivo ao investimento privado como ultraliberal que é, mascarando os seus propósitos. Joga com a falta de memória, a desinformação e a intoxicação da opinião pública, os grandes trunfos dos novos fascistas neoliberais e ultraliberais em todo o mundo.

Atente-se na Argentina de Millei, na Itália de Melloni, por cá na Iniciativa Liberal e no Chega, nas derivas de direita por toda a Europa que o seu amigo e conselheiro Steve Bannon tem oleado. O truque é acenar com uma redução dos gastos na NATO reorientando-nos para a economia interna, o que num país muito fechado sobre si próprio funciona perfeitamente, sobretudo quando Biden a tem afundado. 

A NATO para Trump é tão instrumental como o tem sido desde a sua fundação para os EUA. A diferença é que quer extrair o máximo lucro com o menor investimento. Espalha o pânico numa frágil Europa esperando que além dos reclamados 2% de contribuições o alarme provocado na UE a levem a reforçar o denominado Mecanismo Europeu para a Paz, a armadura guerreira da União Europeia, com que muito está a lucrar o complexo-militar-tecnológico norte-americano. O mecanismo é simples, mesmo primário, os antigos países do Pacto de Varsóvia, actualmente membros da NATO, têm-se desfeito dos arsenais herdados da União Soviética enviando-os para a Ucrânia enquanto os modernizam adquirindo-os aos EUA, utilizando os dinheiros desse fundo. A Polónia é o melhor exemplo dessa engrenagem que está a desenhar na Europa um novo eixo Washington-Londres-Varsóvia que se aproveita dos desvalimentos da Alemanha e da França para se ir impondo, substituindo o de Berlim-Paris, que desde a fundação da UE era dominante.

Paralelamente, os EUA incentivando as sanções contra a Rússia aceleraram a crise económica na Europa tornando-a incapaz de se revitalizar, garroteando-a com os preços de energia que impôs, tornando-se o principal fornecedor em substituição dos muito mais baratos russos, praticando agressivas políticas proteccionistas de incentivo à produção e consumo internos que encurralam a Europa, desviando investimento directo estrangeiro, fazendo-a perder quotas de exportação para os EUA, debilitando a sua competitividade nos mercados internacionais, o que é bem visível, sobretudo, na Alemanha que era o seu motor, em que a deslocalização de empresas e a recessão técnica é uma realidade. 

Trump o que anuncia é o agravamento dessa situação exigindo que os cada vez mais escassos recursos europeus sejam aplicados numa política de defesa que só beneficia os EUA. Simultaneamente, afirma que com ele a guerra na Ucrânia acaba em dois dias. Fá-lo bem ancorado nos seus princípios de caixeiro viajante da política que olha para o fim dessa guerra como um bom negócio para os EUA. Não é melhor nem pior que os democratas que farisaicamente afirmam altissonantemente que estão a defender a democracia e a liberdade, uma intrujice com que travestem as ferramentas do expansionismo norte-americano. Pragmaticamente Trump considera que mais aplicações de capital na Ucrânia deixaram de ser necessárias, devem começar a ser rentabilizadas, daí a sua urgência na paz. Sabe que a direcção, a orientação, a captação de fundos, nomeadamente europeus, para o grande negócio da sua reconstrução vai ser comandada por um conglomerado administrado pelo fundo abutre de investimentos Blackrock e pelo JP Morgan Chase que já o apresentaram em Londres aos investidores prometendo chorudos lucros.

Tudo está a correr maravilhosamente nos carris até porque a Blackrock é actualmente quem de facto controla e dirige as finanças ucranianas, todos os investimentos passam pelo seu crivo. Simultaneamente, a camarilha Zelensky introduziu uma alteração constitucional que permitiu que os férteis terrenos agrícolas que anteriormente só poderiam ser detidos por pessoas singulares ou colectivas aborígenes pudessem ser propriedade de estrangeiros. A resultante é que hoje mais de 65% desses terrenos são propriedade de multinacionais como a Bayer/Monsanto e Cargill que estão prontas para abocanhar mais uns milhares de hectares. Os oligarcas norte-americanos esfregam as mãos com essas perspectivas de mui frutuosos negócios, ainda para mais agilizados pela corrupção que cavalga à rédea solta por aquelas paragens. 

As políticas preconizadas por Trump têm esses objectivos no horizonte. Nenhum princípio o trava, aliás não tem princípios, tudo para ele é um negócio. O Make American Great é uma barganha que, no interior dos EUA, aprofunda as diferenças entre os ricos e a restante população, no plano internacional coloca os aliados a reboque, enfraquecendo-os e tornando-os mais dependentes dos interesses norte-americanos, imaginando que os torna mais robustos e capazes de enfrentar a concorrência dos países mais desenvolvidos e em crescimento que se abrigam nos BRICS. Os ventos da história não correm a seu favor, excepto no rufar dos tambores da demagogia pelos estados da união que parecem estar a ecoar mais fortes que o dos democratas. O grande dilema do povo norte-americano, não é de agora, é o de escolher entre dois males, escolher o mal menor, o que promete prolongar por mais tempo o actual estado comatoso do american way of life antes da máquina ser desligada, empenhamento em que os populistas são eficazes.

Nós, por cá, tudo mal enquanto o jardim do Borrell for o pântano em que nos vamos afundando sem qualquer expectação.

Faz parte da propaganda uma quase aliança entre Trump e Putin, o que é difundido pelos falcões e neo-cons democratas, atirando para o limbo da memória, mas que deve-se sempre recordar, que foi Trump quem rasgou os acordos entre a União Soviética e os EUA, a que a Federação Russa tinha dado continuidade, sobre armas nucleares, mísseis balísticos nucleares e convencionais, sobre limitações de armamento que acabaram por dar novo impulso ao complexo militar-industrial-tecnológico dos EUA . Não esquecer que não foi Trump mas Clinton e depois Obama que puseram fim às leis anti-monopolistas da lei Glass-Seagall, escancarando as portas para a actual financeirização da economia norte-americana para a ascensão dos fundos de investimento que adquiriram a preponderância, para a submissão a uma dívida sempre em aceleração que a tornam impagável mas ainda sustentada por um dólar ainda dominante mas cada vez mais irrelevante nas transacções internacionais.

O que os comentários esquecem é que são poucas as diferenças entre um Steve Bannon e uma Victória «que se foda a Europa» Nuland, ambos pondo em prática de forma diversa as políticas dos neo-cons democratas e republicanos. Houve de facto um reduzir da actividade de golpes de estado, bombardeamentos a outros países, revoluções coloridas durante o período de Trump o que se deveu unicamente a outras prioridades económicas. Isso é aproveitado pela desvairada propaganda dos falcões democratas para inventar uma suposta aliança entre Putin e Trump e para dar um novo furor ao complexo militar-industrial e tecnológico, sobretudo com a guerra na Ucrânia que estamos todos a pagar.

A idiotia generalizada nem sequer percebe que o chamado fundo para o Mecanismo Europeu para a Paz o financia, de que a Polónia, não sendo o único é o melhor exemplo, quando envia armas do tempo do Pacto de Varsóvia para a Ucrânia e compra novas armas aos EUA. Na realidade Biden, Trump, Putin trabalham e são apoiados pelas suas oligarquias locais o que provoca as variáveis políticas de todos conhecida. O alvoroço dos comentários emitidos ignoram, a mais das vezes malevolamente, toda essa realidade só possível pela intoxicação promovida pela comunicação social mercenária ao serviço do pensamento dominante dos grandes interesses económico e financeiros, não distinguindo a ponta do icebergue do muito que está oculto. Mas esse é o estado de sítio que vivemos.

Lamentavelmente, muita gente bem intencionada não consegue ultrapassar o nevoeiro das balelas da comunicação social mercenária que tem até o aspecto curioso de jornais norte-americanos, que são caixas de ressonância da Casa Branca, Pentágono, CIA, NSA, FED, sistema económico-financeiro darem notícias mais críticas da realidade que se vive do que os da caduca Europa. 

(1)https://www.resistir.info/m_hudson/divida_13jan24_1.html https://www.resistir.info/m_hudson/divida_13jan24_2.html .

(publicado em AbrilAbril AbrilAbril | O outro lado das notícias em 17 Fevereiro 2024)

Standard
Geral

DESMONTAR EQUÍVOCOS NAS ARTES CONTEMPORÂNEAS

Retratos de vários personagens tratados com técnicas da Op Art entre eles os de Mandela e José Afonso

O jornal Público de dia 18 de Janeiro, na secção Local, insere uma extensa notícia intitulada «Memorial José Afonso acusado de plagiar o de Mandela na África do Sul». Todos conhecemos e experimentámos o efeito de um título na imprensa escrita. Tem o efeito imediato positivo, apontando para um conteúdo assertivo, ou negativo, de estigmatização, no caso a escultura dedicada a José Afonso e do artista que a realizou, acusando-o de plagiar uma outra, mas também de quem a encomendou por uma suposta negligência de não ter cuidado e aceitar recepcionar um plágio. É um texto extenso que recorre a intervenções de Marco Cianfanelli, autor do memorial a Mandela, considerado original e de Ricardo Crista, autor do memorial a José Afonso, apodado de plágio. São de facto semelhantes, como o são outros memoriais por todo o mundo, refiram-se os de Atarkurk, Rosa Parks, Jim Green, em Portugal o Memorial aos Pescadores de Faro. Todos utilizam a mesma técnica: varas metálicas verticais, recurso a fotografias que aplicadas a esse sistema provocam uma ilusão de óptica em que o personagem ou o tema só é legível numa determinada posição. Acessoriamente os autores argumentam sobre os enquadramentos paisagísticos e as incidências à da luz solar e sua rotação que consideram relevantes para a leitura das obras. São referências indirectas, no caso de Crista até é directa ao Site Specific e a sua relação com a Arte Pública, teorias que surgiram nos anos 70/80 para justificar algumas intervenções no espaço público, que têm em Richard Serra o seu mais conhecido escultor até com muito polémica, como em Tilted Arc(1981) numa praça de Nova Iorque, que acabou removida por dificultar a circulação das pessoas e a visão do espaço. São explicações fundadas sobretudo nas teorias de Traquino (1), sobre o Local e o Lugar, com leituras ligeiras e oblíquas. São derivas explicativas que se vulgarizaram nas artes contemporâneas em que a mais das vezes os textos sobre as obras se sobrepõem às obras, em que se pode detectar a particularidade de serem tão mais inteligentes quanto mais indigentes são as obras, em que a crítica de arte se tornou residual e sem base teórica, dando lugar e espaço a bulas interpretativas como observa de forma assertiva Mario Perniola: «no mundo da crítica de arte jovem está difundida a opinião de que a arte hoje pode prescindir da teoria: o papel do crítico de arte deveria limitar-se a uma espácie de crónica publicitária dos artistas que lhe agradam, sem nunca intervir em questões, já não digo estéticas, mas poéticas ou até relacionadas com a história de arte» (2) Essa é uma das questões centrais na arte contemporânea, aceitando a proposta de Nathalie Heinich de a considerar um género, (3) talvez mesmo a mais central, que tem por pano de fundo o mercado das artes, actualmente parte relevante do mercado de objectos de luxo, em que curadores e comissários são personagens centrais, por serem os «vendedores de necessidades, vendedores de bens e serviços simbólicos que se vendem sempre a si-próprios enquanto modelos, enquanto garantes do valor dos seus produtos» (4). São quem de facto legitima as obras, interfere na normalização e formação do gosto, nos processos do mercado dissociando o valor das obras do valor atribuído aos objectos e às suas condições materiais e sociais de produção. São, nosso tempo, uma ressurreição das funções do baixo clero na Idade Média. Nesse contexto percebe-se como a originalidade e a criatividade das obras de arte foram substituídas pela procura e afirmação a qualquer preço do Novo sujeito às modas nos objectos de arte, um fetiche das mercadorias em que a procura do Novo substituiu os critérios estéticos pelo conceito, pelos conceitos, o que é activamente efectuado por essa gente Paralela e simultaneamente provocou uma situação em que curadores e comissários adquiriram importância e poder, sobrepondo-se, mesmo substituindo os artistas, sujeitando-os aos seus critérios e cálculos, atirando a crítica de arte para a situação de auxiliar mediático e institucional, muito activos na defesa dos seus interesses. Aparentemente esta dissertação parece pouco ou nada relacionada com o assunto em discussão. Grave equívoco. São estas as verdadeiras razões, o verdadeiro palco desta polémica. Não é um acaso o facto de ter surgido nas redes sociais, de Marco Cianfanelli ter sido alertado por três mails remetidos de Portugal, de o Público ter sido provavelmente prevenido por via semelhante, tendo no entanto o cuidado de colocar a noticia na secção Local e não na de Cultura.

O escultor sul-africano manifesta que, «actualmente, [está] no processo de obter aconselhamento através de consultas com as partes relevantes e [decidirá] sobre a resposta ou acção apropriada a partir de então (…) não é a primeira vez que isto acontece comigo, mas nunca o fizeram desta forma». Qual forma? O uso de varas metálicas verticais para realizar um efeito óptico aplicado a uma fotografia? Não se deve estar a referir ao uso dessa técnica que, muito antes dele, vários artistas escultores da op-art a utilizaram. A sua novidade, se é que isso se pode considerar novidade, é a de ter recuperado para a aplicar a um retrato, no caso de Mandela, homenageando-o. Foi o que fez Ricardo Crista com José Afonso e, antes dele, vários outros escultores referidos no início deste texto. Considerar que Ricardo Cristas ou outros escultores o plagiaram é um argumento ambíguo. O escultor sul-africano não pode reclamar algum exclusivo na base de ter sido o primeiro a usar um retrato de uma personalidade pública em op-art. Qual a diferença entre usar a fotografia de uma pessoa a de uma paisagem natural ou urbana ou mesmo temas abstractos? Nenhuma, sobretudo quando Cianfelli usou uma técnica de artistas alinhados na Op-Art que se iniciou em meados dos anos 50, muito antes da sua escultura a Mandela. Claro que os escultores, em linha com a esmagadora maioria dos artistas no estado actual das artes, entram nos caminhos mais que equívocos do Novo, eleito como estratégia para se ter sucesso. Um sem acusar o outro directamente de plágio, como alguns têm feito nas redes sociais, assinalando «não é a primeira vez que isto acontece comigo, mas nunca o fizeram desta forma» o outro reclamando «criar algo único e autêntico». Declarações típicas do tempo que vivemos bem distanciadas das de artistas, esses sim notabílissimos, como Picasso numa entrevista ao Le Monde Littéraire em que afirma: «vou a todas as exposições de artistas jovens só não roubo o que não posso»; ou Paula Rego, na Câmara Clara: «sempre que venho a Lisboa visito o atelier da minha amiga Menez para lhe roubar ideias», perante a estupefacção de Paula Moura Pinheiro. «Ela tem ideias muito melhores que as minhas». Eis artistas que nunca sentiram necessidade de colarem selos de autenticidade, de originalidade às suas obras. Estamos num tempo em que a afirmação do Novo é pedra basilar da economia cultural contemporânea em que «o estatuto socialmente privilegiado e axiologicamente elevado de certos discursos e de certas formas de arte reporta-se exclusivamente ao sucesso da política comercial, mais exactamente institucional dos seus autores e dos seus curadores e comissários. O resultado desta política nada tem a ver com a natureza específica das obras de arte. É um género de análise que descarta qualquer referência a critérios culturais, estéticos ou que teriam por referente o próprio conteúdo, promovendo uma publicidade complementar dirigida especialmente a um público não iniciado.»(5) De algum modo isto explica estas polémicas. Ironicamente, mas extraindo substanciais lucros materiais e imateriais, Yves Klein desmonta esse desmonoramento das artes numa exposição em que expõe quinze telas rigorosamente iguais, todas monocromáticas pintadas com azul Klein (6) em que o único sinal distintivo era o preço, todos diferentes variando entre as dezenas de milhares e as centenas de milhares de euros, o que era certificado em documento numerado e assinado pelo autor. Yves Klein reduzia a zero a originalidade, o Novo eram os certificados do preço, a aura do objecto de arte era o dinheiro, a estética era a bolsa de valores do mercado. Uma feroz radiografia do estado das artes contemporâneas, em que a exaltação do Novo (7) proclamado na pós-modernidade dissocia-o da utopia a que era conectado na modernidade para se colar às teorias que anunciam o seu fim. Nas artes está na ordem do dia com o cinismo disfarçar ou mesmo ocultar os valores prevalecentes da vulgaridade e kitsch da moda que a comandam.

No jogo de espelhos da arte contemporânea e, no caso vertente, a denúncia de plágio é um corpo estranho. Plágio é quando alguém pretende passar por original e seu a obra de outrem sem a referenciar. Há um divertido panfleto de Luiz Pacheco, O Caso do Sonâmbulo Chupista (1980), bem exemplificativo do que é um plágio. Compara mais de uma dezena de parágrafos de um romance de Fernando Namora com os escritos anos antes por Vergílio Ferreira. São praticamente decalcados até na sintaxe, só se diferenciando pelo uso de sinónimos. Se aplicarmos os parâmetros desse texto a esta obra de Ricardo Crista não se poderá considerar um plágio. Assume, em resposta ao Público: «admito, com orgulho, influências marcantes de Cianfanelli, incorporadas, inclusive, na placa identificativa em QR code. Referenciá-lo como inspiração é uma honra para mim». Poderíamos ir mais longe nas questões colocadas por estas obras, e todas as outras referidas, em que as únicas diferenças são as dos retratados, o que de algum modo se enquadra nas problemáticas equacionadas por Walter Benjamin, na A Obra de Arte na Época da sua Reprodução Técnica (8) na perca da aura nas artes visuais. Em épocas anteriores da História de Arte, artistas da mesma época, da mesma escola, utilizando as mesmas técnicas pintaram retratos em que o que os diferencia é a profundidade psicológica que os artistas registam, procurando expor a personalidade dos retratados. Esse olhar crítico dos artistas, essa capacidade de análise psicológica é bem visível ainda hoje, por exemplo, em Lucien Freud, Hockney, Picasso, Modigliani, para só referir alguns pintores, em contraponto com os pastiches de Warhol. No polo oposto na op-art e na pop art, os retaratados são indiferenciados, igualizados, surfa-se pela sua imagem superficial, tratando-os como se fossem um bilhete de identidade. Essa é uma crítica que se pode aplicar a todos os artistas que são dessas escolas ou que, sem o serem, recuperam as suas técnicas em algumas das suas obras. É isso que as torna tão semelhantes e impossibilita a acusação de plágio que nas artes é sempre complexa. Relembre-se um caso que na sua época fez furor e jurisprudência, em que um designer que tinha fabricado uma cadeira em que o assento e as costas eram uma sucessão de cilindros de espuma sobre uma estrutura metálica foi, poucos anos depois, confrontado com uma cadeira rigorosamente igual de outro designer, com a única diferença dos cilindros de espuma terem densidades variáveis. Visualmente eram iguais, a única diferença só era sentida quando alguém se sentava. Na segunda cadeira os cilindros de espuma adequavam-se aos contornos do corpo. O caso foi para tribunal que não considerou ser caso de plágio. Os dois obtiveram direitos de autor. No caso vertente, o que os distingue é exclusivamente a imagem dos retratados. O uso das técnicas das varas metálicas verticais e os efeitos ópticos são secundários.

Até usando como pretexto o nivelamento promovido por esses objectos, o que se poderia e deveria questionar são questões nucleares, algumas aqui enunciadas, e que estas querelas acabam por encobrir. O que realmente se deve discutir são as relações entre a arte e o dinheiro, a nova aura das artes (9) em todas as suas vertentes, o papel dos seus protagonistas, directos e indirectos, que estimulam o desinvestimento político e social, a pervertem enredando-a nos mecanismos de uma estética mercantil, sujeitando-a às variáveis de uma bolsa valores do nicho dos objectos de luxo, o que é feito fomentando o gozo solipsista dos objectos de arte enquanto mercadoria subjectiva da cultura.

(1) Marta Traquino, A Construção do Lugar na Arte Contemporânea, Humus, 2010.

(2) Mario Perniola, A Arte e a sua Sombra, Assírio & Alvim, 2006, p. 75

(3) Nathalie Heinich, Le Paradigme de L’ Art Contemporain, Editions Gallimard, 2014

(4) Pierre Bourdieu, A Distinção, Uma Crítica Social da Faculdade do Juízo, Edições 70, 2010, p. 530

(5) Sobre a autenticidade como estratégia de mercado in Jean Braudillard, Le Système des Objects, Gallimard, 1968, p. 103-112

(6) Uma variante de azul ultramarino que Yves Klein, efectuando pequenas variantes de paleta, registou a propriedade, sendo atribuido o número 286 C, da classificação Pantone

(7) «Pode-se compreender que o mercado da arte se sujeite como todos os mercados às regras do novo, exerça uma espécie de sedução nos artistas (…) sedução que se exerce por uma confusão entre a inovação e Ereignis (…) O segredo do sucesso artístico como o do sucesso comercial, está num equilíbrio entre o que surpreende e o que é bem conhecido, entre informação e código. É assim que se opera a inovação em arte: reutilizam-se fórmulas de confirmados sucessos anteriores, desequilibram-se combinando-os com fórmulas em príncipio incompatíveis, por amálgamas, citações, ornamentações, pastiches» Jean- François Lyotard, Le Sublime et L’Avant-Garde, in Lyotard et Les Arts, Coblence F. Enaudeau, Klincksieck, 2011, p. 210 «Todo o artista se conforma de uma ou outra maneira às violentas ortodoxias da época. As mulheres obedecem aos anuais decretos da moda de Paris, o artista a perder a individualidade» The essential of Wyndham Lewis, Julian Simmons,1898, p. 179

(8) Walter Benjamin, in A Modernidade, Obras Escolhidas de Walter Benjamin, Assírio & Alvim, p. 207-242

(9) leia-se O Êxtase Total : a Arte, o Luxo, o Dinheiro entrevista a Nathalie Quintane por António Guerreiro, Electra 6, Verão de 2019

Standard
Geral

ARTIMANHAS

André Ventura tal com Hitler, bem retratado nestas fotomontagens de John Heartfield, é um homem de mão do grande capital que o financia largamente, capital que ontem, como hoje ou amanhã nunca se engana nas suas escolhas.

Hoje no Público dedica duas páginas ao Chega em que, com aparente neutralidade informativa, se elogia descaradamente o verniz de civilidade com que decorreu a sua última convenção para, encapotadamente, detergentarem os evidentes traços neo-fascistas e disfarçarem os seus propósitos caceteiros, classificando-o como um partido de direita radical, simpático eufemismo que acaba por o legitimar. São duas páginas de interpretação dessa convenção em que, em vez de desmontar a venda de banha da cobra dos venturas, as alarvidades, as mentiras mais descaradas, as demagogias mais descabeladas facilmente desmontáveis se cotejadas com os principios programáticos, as votações na AR, alinham um argumentário para solidificar uma conclusão sintetizada no título da notícia principal: «Preparem-se : o Chega já não é só gritos e jantares». Ora bolas !!! A preclara jornalista só agora atentou que o Chega nunca foi só gritos e jantares ? Nunca tinha percebido que o Chega sempre foi o que continua a ser, um partido neofascista que se propõe dar uns abanões a tempo no sistema enquanto não lhe pode dar uma surra ? O que todos devem perceber é que este jornalismo, em que um jornal como o Público que é dos que freneticamente agita a bandeira mais que esfarrapada do pluralismo, independência e rigor informativo no mesmo dia em que não dedica sequer uma linha à manifestação pela paz na Palestina que se realizou no dia anterior e juntou dezenas de milhares de pessoas, já nem consegue de modo eficaz dissimular ser um contribuinte activo do pensamento dominante neoliberal e por isso faz o favor de fazer publicidade gratuita ao Chega simulando realizar uma análise piedosa. Com essas ajudas o Chega vai conquistando votos, mas sobretudo justifica o capital que as oligarquias nele têm investido, e que estas notícias mais os tempos de antena televisivos e radiofónicos concedidos a essa sua tropafandanga de choque, ficam impulsionadas a aumentar as paradas. Assunto a que os distintos jornalistas do Público dizem nada, em linha com nada dizerem sobre as vigarices que o Chega e o aldrabão do seu gauleiter propagandeiam como o fizeram de forma altissonante nessa sexta convenção!!!

Standard
Geral

CORTINAS DE FUMO

Fitas de Excesso, Yves Tanguy, 1932

Nunca as televisões, há que destacar a RTP por ser paga por todos nós contribuintes, e outros órgãos de informação dedicaram tanto tempo a qualquer outra luta de trabalhadores, exceptuando as que podem fazer mossa na opinião pública, como ultimamente a dos trabalhadores da Global Media, um grupo de comunicação social com vários títulos na imprensa escrita e na rádio. A reportagem, as reportagens são típicas do estado actual da comunicação social que em Portugal reflete a que se vive no mundo ocidental em que as notícias são tendenciosas, dominadas pelos poderes económicos e pelos poderes políticos que são as suas correias de transmissão, em que as bandeiras da independência e pluralismo, agora tão agitadas, são uma falácia. Estão a aproveitar esta crise e luta para vender a ideia que o jornalismo é neutro, quando os jornais, a rádio e a televisão, influenciam-se mutuamente, teatralizando casos e casinhos para a voragem da chamada opinião pública, adubando populismos, manipulando e moldando factos, conceitos, interpretações, encenando os efeitos comunicacionais despudoradamente, sem qualquer preocupação com o rigor, a investigação séria, o estudo aprofundado. Não é de hoje. Já nos anos 60 Leo Ferré, numa das suas versões de Les Temps Dificiles, ia à televisão procurar a verdade e recebia como resposta que a verdade não morava ali. A diferença é que progressivamente isso se tornou uma realidade quotidiana ao serviço das plutocracias, dos interesses do neoliberalismo politicamente assumidos pelos demoliberais, direita e extrema – direita. Se dúvidas houvesse sobre as benesses concedidas a essa gente em Portugal, basta consultar os tempos de antena dos vinte políticos e comentadores mais presentes nos ecrans televisivos durante o ano de 2023. Se dúvidas houvesse compulsem-se os editoriais dos jornais, de todos os jornais mesmo os agora ameaçados de extinção. Quando e muito raramente alguém de esquerda, há que manter as aparências, consegue ultrapassar a cortina de invisibilização logo são submetidos a um feroz questionamento por parte de jornalistas e comentadores, o que é indecoroso e desonesto sobretudo quando comparado com o tratamento e ausência de critica concedidos a quem se apresente alinhado com as propostas neoliberais. O objectivo, a intenção é deslegitimizar as propostas de esquerda, mesmo as que podem ser mais consensuais, fazer passar por normal e do senso comum as concepções derivadas do liberalismo, seja o clássico, o mais actual neoliberal ou mesmo o mais radical ultraliberal. Há um evidente enviesamento, uma ausência de pluralismo-ideológico que contamina os combates pela justiça social e política e que agora, aproveitando desabusadamente a luta dos trabalhadores da Global Media, é apresentado como estar em risco, quando os órgãos de comunicação social desse grupo económico eram sujeitos activos do estado geral abandalhado dos media, muito por acção directa da ditadura de directores e editores em que se chegou ao desaforo de directores editoriais do Diário de Notícias, Rosália Amorim, do Jornal de Notícias, Inês Cardoso, da TSF, Domingos Andrade, serem simultaneamente membros do Conselho de Administração nos tempos do domínio de Marcos Galinha na Global Media, sem que essa promiscuidade causasse algum incómodo, como frisou a directora de Comunicação do grupo, Helena Ferro Gouveia, outra extraordinária personagem destes tempos de opróbrio nas televisões, especialista em aviltar a informação nos comentários que abundantemente produz na CNN.

Quem sabia da poda, até antecipou a situação actual foi o incansável empreendedor Belmiro de Azevedo quando decidiu investir num perdócio (a classificação é dele) o jornal Público. Aliás a evolução desse jornal, desde a sua fundação em 1990, é exemplar de como a pluralidade e independência se degradam rapidamente o que é bem vísivel na actualidade em que os comentadores são esmagadoramente de direita, os editoriais e noticiários favorecem claramente a direita. Degradação que não é um acaso, corresponde a um percurso que é a da valorização do perdócio, o que evidentemente estava nas intenções do investidor que nunca aplicou capital sem ter no horizonte resultados positivos materiais e ou imateriais.

Essa trajectória exemplar espelha a dos outros meios de comunicação social, tanto os detidos pelos oligarcas nacionais como nos do chamado serviço público, que é suportado por todos nós contribuintes, e da direita mais à direita que tem o seu alfa hodierno no Observador, bem lubrificado pelo capital, com ligações transnacionais que deveriam ser escrutinadas.

A luta dos trabalhadores da Global Media pelos salários é uma luta justa como o são as lutas de muitos outros trabalhadores, até as que foram esquecidas nas colunas dos jornais e nas ondas radiofónicas detidas por esse grupo económico sem que, sublinhe-se, fossem audíveis protestos significativos.

Não são inesperados os sobressaltos de jornalistas dos outros órgão de comunicação social por naturais impulsos corporativos, por estarem a ver a Global Media a arder, quando algum fumo começa a escapar pelas frinchas das portas da Trust in News, de que deveriam ser investigados de maneira funda e séria a origem dos capitais. O que já não é suportável é assistir à confusão deliberada da justa luta dos trabalhadores da Global Media pelos seus salários, sobretudo pelo seu direito ao trabalho, com pluralismo e independência informativa que está reduzida à sua expressão mais simplificada, que não é praticada por esses arautos que rufam tambores na praça pública.

Ana Sá Lopes deu o tiro de partida para uma corrida favorável à nacionalização da Global Media, como se essa acção fosse fulcral para a independência e o pluralismo informativo. Basta atentar para o estado actual do serviço público da comunicação social para se verificar sem margem para ilusões como a independência e o pluralismo aí são minguantes, alinhados com o pensamento dominante. Sobre alguns temas conseguem ainda ter posições mais retrógadas com comentários e comentadores até mais reaccionários que os media detidos pelas oligarquias. No estado de sítio actual sem alterações futuras previsíveis, a nacionalização da Global Media não é garante de nada. Só por erros de paralaxe uns, outros por um oportunismo até inexplicável assiste-se a gente e políticos de esquerda a alinharem nessa deriva. A gente de esquerda que não enfileira com a esquerda mediática faz cálculos equivocados no pressuposto da situação geral melhorar, que a nacionalização ou que uma parceria público-privada contribuiria para esse desiderato. Mais grave são os políticos à espera de colherem algum futuro benefício por artes populistas junto dos profissionais da comunicação social. Bem podem esperar sentados, deveriam saber que os oportunismos nunca compensam e os meios da comunicação social sofrem a ditadura e a censura de directores e editores, servidores dedicados, ainda que desigualmente, das plutocracias que os mais hábeis por vezes conseguem disfarçar, que a independência, o pluralismo e o rigor informativo pouco ou nada têm a ver com serem públicos ou privados como é facilmente comprovado se os percorrermos.

Percebe-se que Ana Sá Lopes, sendo personagem perto das chefias ou fazendo parte dessas chefias e das administrações implicadas nas orientações editoriais e até em despedimentos colectivos e selectivos de jornalistas, seja corporativamente motivada, reivindique a nacionalização dos títulos da Global Media e nunca tenha defendido, mesmo com muito menor vigor, o resgaste de nacionalizações e reversões de concessões por exemplo da ANA, uma escandalosa privatização que rapidamente foi ressarcida da tuta e meia de capital investido, ou os CTT em que os privados ficaram com todo o património, não cumprem os requisitos exigíveis de qualidade de serviço, até se deram ao luxo de distribuir avultados dividendos quando tiveram prejuízos. Isto para apontar para empresas mais badaladas na actualidade, sem referir outros sectores de actividade económica essenciais que deveriam continuar a ser detidos pelo Estado e foram condenávelmente privatizados pelos sucessivos governos PS, PSD, CDS que, sozinhos ou em aliança, se têm sucedido no (des)governo da nação sempre em benefício do grande capital, oferendando lucros, socializando prejuízos. A essas privatizações e concessões, a essas negociatas Ana Sá Lopes, em linha com os seus pares, diz nada, para que o enviesamento do pluralismo e a independência jornalística não fiquem feridos, o que é sintomático da desinformação de fachada neutral que galopa a toda a brida.

Standard
Geral

MÁQUINAS CHINFRINANTES

caricatura de Georges Grosz, Café , 1933

Uma das revelações mais interessantes e simultaneamente mais preocupantes da guerra na Ucrânia e do genocídio que Israel está a realizar na faixa de Gaza, é a quantidade de idiotas úteis arrebanhados nos corpos docentes das nossas faculdades recrutados como comentadores que debitam com o maior à vontade os mais variegados dislates na procura de alinhar e reproduzir a voz do dono que atravessa o Atlântico, agenciando os seus vassalos para que dela sejam arautos. Tal é a ânsia de mostrar serviço na mineração de prebendas que a mais das vezes essas vozes são tão canhestras que se expõem ao despautério. Por cá a mediocridade corrente mais acentua a disfuncionalidade. Os desenvolvimentos no terreno tornam ainda mais evidente essa realidade em que, para essa turbamulta, os antecedentes históricos são aplainados ou mesmo completamente obliterados. Em relação à Ucrânia a deriva nazi-fascista pós Maidan é rasurada, como apagadas são quaisquer referências à programada subversão dos Acordos de Minsk, a guerra ter sido iniciada em 2014, oito anos antes da invasão pela Federação Russa que preveniu a iminente razia das populações russófonas. Ouvi-los argumentar quando na Ucrânia a fase actual da tão anunciada contra ofensiva é um fracasso indisfarcável, os avanços russos são por razões táticas lentos mas seguros, as acções militares ucranianas parecem ter mais objectivos espectaculares do que razões estratégicas para abrilhantar as conversas em família de Zelensky, é um exercício em que a ficção é tão manifesta que até tem laivos rídiculos. Em paralelo o genocídio dos palestinianos por Israel em Gaza, o apertar do cerco estado policial na Cisjordânia é para essa gente uma consequência das acções do Hamas em 7 de Outubro, como isso surgisse do nada. Nunca referem a política colonial posta em prática por Israel desde a sua invenção, a sua defesa de uma raça diferente e superior, política tinham aplaudido aos nazis que lhes retribuiram entusiasticamente os encómios (1). Nem sequer mencionam que nada disto é novo, repete com maior brutalidade a campanha, com meios aéreos e terrestres, de 2009 quando Israel usou como agora uma força militar desproporcionada durante 32 dias contra o Hamas e os civis em Gaza, o que foi objecto de uma missão da ONU, dirigida pelo judeu Goldstone, para documentar as violações dos direitos humanos cometidas durante esse conflito. Ontem como hoje o governo israelita recusou toda a colaboração por a missão não se conformar com a ortodoxia sionista, que nunca cumpriu qualquer resolução das mais de uma centena que a ONU produziu criticando a política de colonatos, os bloqueios a Gaza, os muros na Cisjordânia, entre outras graves atentados sempre com o objectivo de inviabilizar a política dos dois Estados. Tudo isso é omisso nas parlapatices desses comentadores encartados pelas oligarquias que controlam a comunicação social e contaminam a de serviço público pago por todos nós contribuintes.

O que é deveras inquietante é saber-se que muita dessa gente tem lugares destacados no professorado, estampa na lapela mestrados e doutoramentos, dá aulas em que deve sebentar com maior pormenor as asnices que difunde nos espaços mediáticos, orienta teses, viaja a perorar pela estranja em colóquios e seminários onde o pensamento inútil é preponderante mas abrilhanta currículos. Paleios que não devem ser muito diferentes das parvoidades que debitam com grande desplante, até arrogância, quando lhes concedem tempo de antena. É aflitivo, mesmo angustiante ouvi-los percebendo-se que essa gente de cabeça minguante está colonizada pelo pensamento anglo-saxónico dominante nas ciências humanas, sendo bem conhecida a sua decadência que é uma consequência das relações subservientes entre os intelectuais e o poder nos Estados Unidos da América do Norte (EUA) e na Grã-Bretanha que conduziu, com cada vez menos excepções, à mingua, mesmo morte das elites progressistas.

Essa tropa fandanga de teóricos críticos, por cá como por lá, sabe muitíssimo bem, tem isso bem interiorizado, que é impossível contestar ou debater publicamente as convenções e as estruturas estabelecidas. O conformismo em relação à cultura prevalecente é recompensado, a ascensão no professorado e social é garantida dependendo sobretudo das técnicas de mobilidade pelos corredores dos poderes.

Russell Jacoby desnuda com agudeza o estado pantanoso do ensino universitário nessas áreas nos EUA, que se propagou pelas academias, as citadelas dos valores ocidentais: « O problema é que os professores garantem o seu estatuto desde que não exprimam ideias impopulares, controversas. Só assim é que tem direito à catedra (…) Pela sua inércia conservadora, a universidade contemporânea tornou-se o lugar mais refratário à procura da verdade. O conceito de professor catedrático, professor agregado, a que anteriormente se dava grande valor, é hoje um conceito vazio, sem sentido» (2)

A questão é muitíssimo grave, está na ordem do dia. Actualmente exprimir um pensamento autónomo, sobretudo se for de esquerda, nas áreas das ciências humanas é praticamente garantir a ruína instantânea de uma carreira académica e em outras áreas profissionais. As portas fecham-se, as subvenções emagrecem ou mesmo desaparecem, os textos de opinião, a participação em debates na rádio e na televisão são cada vez mais escassos, quando existem é para mascarar um pluralismo declinante, basta compulsar, para não ir mais longe, os meios de comunicação social de há vinte e cinco anos e os de hoje, alinhar os tempos de antena concedidos aos políticos e comentadores, aquilatar o poder discricionário de directores e editores que asfixia o jornalismo. Maioritáriamente de direita, são activos tóxicos da democracia mesmo a mais formal, injectando-a de populismos que a corroem tendendo para um novo fascismo de fachada democrática, na sua mais suave presença e enquanto as crises dos superiores interesses económicos o permitirem e não exigirem soluções mais musculadas.

Nada disto é novo, vulgarizou-se perigosamente com os membros das elites progressistas a submeterem-se a considerações pragmáticas quando querem manter-se próximos ou sentar-se nos círculos do poder como Edward Said, já em 1996, teorizava no seu livro Des Intelectuels e du Pouvoir: « Em minha opinião nada é mais repreensível que esta disposição (dos intelectuais) de fugir, esta desercão característica de posições de princípio que se sabem ser pertinentemente justas. Este medo de parecer ser muito político e revindicativo, esta necessidade de aprovação por parte de quem detém a autoridade; este desejo de manter uma reputação de objectividade e de moderação com a esperança de ser procurado, consultado ou de se sentar nalgum comité de prestígio, para se conservar na corrente dominante, receber talvez um diploma, uma espórtula, uma embaixada.

Este modo de pensar e comportamental é, por excelência, corruptor; mais que qualquer outra coisa desnatura, neutraliza e finalmente assassina qualquer vida intelectualmente apaixonada, é o que tais práticas efectivam.» (3)

Esta infestação de comentadores intelectuais que decidem colaborar com a concretização dos objectivos dos poderes dominantes em troca de vantagens curriculares e económicas, fechando os olhos às realidades, calcando as verdades, renunciando a qualquer réstea de ética, são uma espécie endémica nas sociedades actuais que crestam a democracia, mesmo a mais imprecisa, na Europa e no continente americano o que é bem vísivel pelos avanços da direita e extrema direita, pela propagação dos populismos de mais baixa extracção, com bastante culpas das esquerdas tibuteantes que se aliaram e aliam a sectores demoliberais para neutralizar a luta de classes, contribuindo para salvar o capitalismo nas suas metamorfoses do liberalismo clássico ao neoliberalismo, surfando pela alienação e estupidificação adubada por esses enxames que invadem academias, comunicação social, redes sociais. Este é o grande drama da nossa época que tem que ser enfrentado sem detenças nem ilusões pelas esquerdas que sabem que a dominação capitalista, por mais hegemónica que seja a sua imagem, não é eterna, que as lutas políticas, sociais e económicas não se podem limitar a mudanças sociais sem o objectivo de mudanças estruturais.

(1) A Federação Sionista da Alemanha, em 1933, enviou uma declaração ao Congresso do Partido Nacional-Socialista em que afirmava que“um renascimento da vida nacional como o que está a acontecer na vida alemã (…) deve também acontecer na nação judaica. A base de um novo Estado Nazi deve também ocorrer na formação de um Estado Nacional Judaico. Com os princípios de um novo Estado Nazi fundado no princípio da raça, devemos enquadrar a nossa comunidade com natureza similar para que se possa estruturar e desenvolver uma Pátria Judaica”

(2) Russell Jacoby, The End of Utopia, Politics and Culture in a Age of Apathy, Basic Books, 2000. p 63-64

(3) Edward W. Said, Des Intelectuelles e du Pouvoir, Seuil, 1996. p.116-117

(publicado em AbrilAbril, https://www.abrilabril.pt/ , 2 janeiro 2024)

Standard
Geral

A ARTE FASCISTA FAZ MAL À VISTA

David Evans,Júlio Pereira, Júlio Pomar, Rogério Ribeiro, Nuno San-Payo, Vitor Palla

Estamos em vésperas de entrar no ano em que se comemoram 50 anos da Revolução do 25 de Abril. Meio século em que muitas das portas que Abril abriu foram fechadas pelas políticas de direita que afanosamente as aferrolharam. Todas as revoluções defrontam imediatamente a contra-revolução que se manifesta de formas diversas muitas vezes mascaradas de ultra-revolucionárias. A Revolução do 25 de Abril não foi excepção até pelas suas características particulares de uma acção militar rapidamente impulsionada por movimentos populares, dando início ao que se caracterizou e foi sintetizado numa fórmula particularmente feliz e justa da aliança Povo-MFA.

Nesse contexto ninguém podia ficar indiferente. O universo cultural, que de forma esmagadoramente maioritária se opunha ao fascismo salazarista, sem a violência da censura, podia expressar-se em liberdade. As artes, ganha a liberdade de expressão, procuraram alcançar toda a população, democratizando a cultura.

Os artistas, em aliança com os protagonistas do 25 de Abril, desempenharam um papel crucial nesse cenário. Nas ruas multiplicaram-se os murais com fortes apelos políticos. Muitos realizados por artistas plásticos outros por populares que se juntavam a consagrados artistas. As paredes falavam, falavam dos justos anseios de um povo sujeito à mais longa ditadura na Europa. Lembre-se que antes a pintura nas ruas era exemplarmente reprimida, resumia-se a palavras de ordem que, com todos os riscos, militantes políticos escreviam recorrendo a maioria das vezes a nitrato de prata durante a noite invísivel que a luz solar pintava de um negro espesso.

No dia 28 de Maio de 1974, um grupo de artistas, Júlio Pomar, Vitor Palla, Rogério Ribeiro, Júlio Pereira, David Evans e Nuno San-Payo, invade o Palácio Foz, embrulham num pano negro com a inscrição Movimento Democrático dos Artistas Plásticos (MDAP) a imponente estátua de Salazar. Publicitaram uma palavra de ordem que não perdeu a actualidade: A Arte Fascista Faz Mal à Vista. Nos nossos dias não perdeu nem actualidade nem oportunidade quando se pretende, pretensão que tem óbvios objectivos políticos, que a cultura é um território neutro, em que direita e esquerda é um conceito obsoleto como se fosse possível, para escolher um exemplo paradigmático, que o Ouro do Reno de Wagner, seja escutado, interpretado e decifrado do mesmo modo por um homem de esquerda e um de direita.(1)

O MDAP, em 10 de Junho o malfadado Dia da Raça fascista, promove um mural que mobilizou 49 artistas que pintaram 49 quadrados, no quadrado 50 recordaram José Dias Coelho, escultor militante do PCP assasinado pela PIDE. Os propósitos do MDAP não se concretizaram como os seus fundadores pretendiam embora tivessem impactos não despiciendos.
Nos nossos dias, quando vamos comemorar 50 anos da Revolução de Abril, deve-se recordar o que na cultura e nas artes o 25 de Abril tornou possível e o muito que ficou pelo caminho. Evocar nunca com uma paralisia passadista mas com as urgências que os tempos que vivemos impõem quando as artes vivem uma crise disfarçada por uma actividade múltipla que maioritariamente se confunde com celebraçãoes sociais no frenesi das modas e do mercado dos objectos de luxo que acaba por fazer tão mal à vista como a arte fascista. Que as memórias dos 50 anos de Abril sejam um catalisador do que artes têm para dizer à vida, reinvestindo-as estética e politicamente, recuperando-as do deserto social desta sociedade, sem que a política dela se aproprie, desvirtuando-a.

(1) leia-se O Wagneriano Perfeito, George Bernard Shaw, Palimpsesto 2014

(publicado em Avante! 2613 / 28 Dezembro 2023)

Standard
Geral

FALÁCIAS PÓS_MODERNAS

Sem Título , Yves Tanguy, 1931

Dois especialistas(?) em relações internacionais ouvidos pela TVI retiram conclusões extraordinárias sobre as virtudes e consequências da decisão da UE de abrir negociações para a adesão da Ucrânia à UE. Percebe-se que Zelensky as apresente como uma grande vitória com o objectivo de sustentar as suas práticas centralizadoras e autocráticas surdas às realidades tanto internas como externas, que pretenda lustrar uma imagem que empalidece rapidamente e que nem sequer os seus dotes de comediante iludem, que tem graves problemas de contestação interna desde o chefe do Estado Maior do Exército, Valeri Zaluzhny, aos chefes dos Serviços Secretos, Kiril Budanov, do gabinete da presidência, Andreéi Yermak, do ex-assessor Arestovitch, do presidente da Câmara Municipal de Kiev Vitali Klichkov porta-voz de muitos outros munícipios, que têm aparecido em notícias e entrevistas nos insuspeitos The Economist, The Guardian, The Washington Post, The New York Times, The Independent e outros, que registam paralelamente uma acentuada baixa de popularidade, jornais que têm fontes muito próximas ou são mesmo ecos dos governos dos EUA e Grã-Bretanha. Que Zelensky trombeteie esse início de negociações que vão durar anos, para desviar as atenções do atoleiro de intragalhadas políticas em que tenta sobreviver e das práticas ditatoriais e da corrupção que corrói o seu poder e o seu governo é expectável, agora que por cá uns supostos especialistas (?) em relações internacionais declarem com grande desplante que «na perspectiva da Rússia, isto é uma grande traição. A grande ameaça é a adesão à NATO, mas a adesão à União Europeia pode ser um perigo ainda maior para Putin. Se houver muita prosperidade na Ucrânia, isso pode ter um efeito de contágio para o povo russo e sobre o regime despótico de Putin», conclui Francisco Pereira Coutinho, no que é corroborado por José Filipe Pinto, outro professor e especialista em relações internacionais, que exalta “uma vitória que motiva, inspira e fortalece” (…) É muito mais do que uma mera vitória simbólica. Depois de muitas dificuldades, há a sensação de que o sacrifício está a dar resultados, uma vez que a adesão é um dos grandes objetivos ucranianos. A mensagem é forte, a União Europeia considera a Ucrânia um dos seus”, são argumentários tão ufanos que poucos, mesmo os mais entusiastas com as perspectivas aparentemente abertas por este início de negociações se privam de fazer. Decisão só unânime porque Victor Órban se ausentou, embora muitos dos países que votaram a favor manifestassem as mesmas dúvidas de tal modo audíveis que mesmo António Costa se sentiu obrigado a referi-las.

Uma deliberação, que não foi acompanhada por um derramar de mais uns milhões de euros nas mais que depauperadas, mesmo desesperadas finanças ucranianas, numa altura em que a União Europeia está em acentuado declínio económico, com o seu país vanguarda económica, a Alemanha, em recessão técnica, outros com taxas de inflação de dois dígitos. As promessas de prosperidade para a Ucrânia é uma tagarelice sofista desde o golpe de Maidan, quando a economia da Ucrânia já estava em queda o que mais se acentuou com a invasão russa em 2022, que travou o genocídio da população russófona que estava em marcha desde 2014 e manifestamente se iria acelerar, facto completamente obliterado nos media do jardim do Borrell. A situação actual na Ucrânia é a de um país a ser vendido em saldos o que foi uma oportunidade barata para os fundos de investimento da Blackrock, VanguardGroup, Fidelity Investments (FMR LLC), State Street que compraram os seus activos económicos e financeiros e a controlam praticamente por inteiro. É a das suas ricas terras agrícolas já serem hoje maioritariamente propriedade de multinacionais como a Monsanto/Bayer e Cargill. Em que as hipóteses de reconstrução da Ucrânia, do que dela restar no pós-guerra, estar a ser desenhada por esses grandes fundos abutres que, assinale-se, controlam uma parte importante da economia norte-americana, estão presentes no capital dos principais bancos da Wall Street, das corporações das chamadas tecnologias inteligentes em Silicon Valley, grandes empresas farmacêuticas, empresas do complexo militar-industrial-financeiro, etc, em economias de outros países e que não perderam tempo em explorar todas as fragilidades da Ucrânia e da corrupção reconhecida como das mais endémicas,mesmo pelos seus principais apoiantes, atirada para um nevoento limbo por ursulas, micheis, borreis e outros bichos móis vendidos a esses interesses, vassalos do imperalismo decadente dos EUA que está progressivamente a degradar a UE, para a colocar completamente na sua dependência em conformidade com as teses geopolíticas dos straussianos bem explicitadas por Wolfowitz no Defense Planning Guidance. É esta a prosperidade que esses especialistas, e todos os outros que infestam a comunicação social, apontam para o povo ucraniano que está a ser despojado de direitos políticos, sociais e económicos a mando do FMI e dessas multinacionais, que serão as principais beneficiárias dos fundos da UE. Não é ignorância, é a estupidez em marcha estupidificando a opinião pública.

O mais extraordinário, revelador do farisaísmo desses especialistas(?) é não estarem sequer atentos às fricções que as benesses concedidas pelas cúpulas da Comissão Europeia, essa camarilha não eleita, à Ucrânia têm provocado nos países que com ela fazem fronteira, que desde a primeira hora têm estado entre os seus mais esforçados apoiantes como a Polónia, Roménia, Bulgária, para não referir os reticentes Hungria e Eslováquia. Num futuro, que não se advinha próximo, as consequências da integração da Ucrânia na UE teria efeitos devastadores para os países mais dependentes dos apoios de Bruxelas, que deles ficariam excluídos ou melhor das hipóteses reduzidos a esquálidos valores, e custos insuportáveis para os contribuintes líquidos dos orçamentos da UE. Que muitas das políticas económicas, como a PAC, ficariam de pantanas e não é acreditável que fossem aceites, com a fortíssima probabilidade de a França, um dos pilares da UE, ser ponta de lança para no futuro as boicotar. Na prática, exceptuando as políticas retóricas sem significativos impactos económicos e financeiros é que escapariam ao turbilhão que a adesão da Ucrânia de facto provocaria. Nada disto entra nos discursos patéticos dessa gente.

Ao contrário do que esses especialistas(?) auguram quem fica à beira de explodir com a integração da Ucrânia é a União Europeia, assim como a corrupção visìvel e invisível instalada seria vitaminada impulsionando os lobistas que gravitam em Bruxelas influenciando ainda mais as suas políticas, bem representados na Comissão Europeia, uma teia de aranha cada vez mais tentacular estendida pelo neoliberalismo, que é canibalizadora mesmo dos menos questionáveis princípios da União Europeia.

A outra e grande inquietação que decorre das elucubrações dessa gente é o que se ensina nas universidades portuguesas. O desfile de farroupilhas idiotas úteis que tem desaguado na comunicação social ostentando o emblema de professor-universitário-especialista nisto e naquilo só pode de provocar um alvoroço de desassossegos. Mesmo que se dê de barato o estarem ao serviço das oligarquias nacionais, o serem vozes do dono dos verdadeiros donos dos destinos de um império em agonia e seus vassalos urbi et orbi, o que deveras exaspera é a sua mediocridade, sinalizando que somos um país periférico ainda que enquadrado nas estratégias mediáticas do neoliberalismo que, por todo o mundo, se apropriam ou procuram apropriar-se do campo da economia política e do campo da consciência humana, para adubarem o pântano onde o neofascismo floresce, fazendo o percurso do liberalismo para o neoliberalismo absoluto e terminal. Esse é o grande perigo anunciado, bem vísivel no crescimento das direitas e extremas direitas, em que pontificam bons representantes do alerta feito por um personagem do filme Le Bassin de John Wayne de João César Monteiro «hoje, os novos fascistas, apresentam-se como democratas». Por cá é vê-los na Intervenção Liberal bem perfumados de tiques betosos, conversa encerada a venderem vigésimos premiados, ou berrantes taberneiros e caceteiros do Chega prontos para as maiores cegadas.

Standard
Geral

NOSTALGIAS NEO-FASCISTAS

Duas fotomontagens de John Heartfield que não perderam actualidade e ilustram muito claramente quais são as massas que apoiam os fascismos sejam os de antanho, sejam os actuais.

Este dia não

O vinte e cinco de Novembro não é para celebrar.

Porque não foi um acto de alegria,

foi um acto de necessidade.

Para os melhores, dolorosa, para os piores maligna.

Proponho a esta assembleia de povos

um dia de silêncio

em honra da fala portuguesa, sem ódio.

Que não viva a morte.

Maria Velho da Costa

Os golpismos contra a Revolução do 25 de Abril, iniciaram-se imediatamente a seguir ao seu triunfo. Tiveram a sua expressão mais visível com o golpe Palma Carlos, o 28 de Setembro e a maioria silenciosa, o 11 de Março e o ataque ao Ralis, o chamado Verão Quente em que o terrorismo
a rédea solta incendiava sedes do PCP, depois de um longo período de instabilidade política e militar o 25 de Novembro é a ponta final dessa longa lista de golpismo contra revolucionário. Um desfecho em que se empenharam os contra revolucionários de sempre, aliados ao PS, PSD, CDS e os esquerdistas do MRPP. Na sombra o activissimo embaixador dos EUA, Frank Carlucci e a CIA.

Era também o fim da linha de um longo processo de lutas entre diferentes facções do MFA que entre si mediam forças e disputavam comandos militares. A verdadeira tragédia era enfrentarem-se militares que deveriam ter encontrado uma plataforma comum na defesa de Abril e que, por sectarismo de direita e de esquerda, se afrontaram acabando todos, embora desigualmente, ameaçados pelos reaccionários que o que queriam de facto era destruir as Conquistas de Abril, elaborar uma Constituição que consagrasse, ainda que de modo oblíquo, o retorno ao antes de Abril, degradasse irreversivelmente a democracia e as liberdades alcançadas para recompor o poder económico de grupos de antanho e de novos grupos, como veio a acontecer com os governos que se sucederam no pós-25 Novembro. Paradoxalmente a derrota da esquerda militar, o triunfo das facções militares que alinharam com o Grupo dos Nove, resultantes das suas alianças com a direita reaccionária, acabaram por dar consciência aos militares democratas, não eram poucos, aí alinhados que o que estava em causa, o pano de fundo desses seus aliados ocasionais era um verdadeiro assalto ao poder pelas forças políticas de extrema-direita e à direita as que estavam acantonadas no PS, PSD, CDS, nos reaccionários de vários matizes com destaque para o MRPP. Na sequência do 25 de Novembro a extrema-direita terrorista, demonstrou claramente a sua insatisfação continuando a sua acção bombista nos anos sequentes. Para esses militares e também para sectores do PS essa nova realidade acabou por se tornar bem vísivel.

A reescrita da história do 25 de Novembro, quer fazer passar a ideia que o que estava em marcha era um golpe promovido pelo PCP, pela Esquerda Militar, pelos chamados gonçalvistas, quando de facto foi um golpe contra-revolucionário, longamente preparado durante um período de grande instabilidade em que se rearrumaram forças militares e políticas. Um golpe bem urdido pela CIA, o seu futuro chefe Carlucci e o seu grande aliado em Portugal Mário Soares, que só não alcançou totalmente os seus objectivos, a reversão total da Revolução de Abril, porque no limite o PCP e o Grupo dos Nove estancaram os maiores perigos que ameaçavam a democracia, as liberdades e uma sangrenta guerra civil.

A revisão da história do 25 de Novembro tem sido um objectivo declarado de um grupo inscrito num largo círculo em que se inscrevem personagens da direita mais tramontana a direitolas estacionados em partidos como o PS, ganhou novo impulso quando estamos às portas das Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril.

É a tropa fandanga dos nostálgicos do 24 de Abril de braço dado com reaccionários de várias cores e paladares, que vai à desfilada comemorar o 25 de Novembro, manipulando a história porque para eles não é suficiente o 25 de Novembro marcar o início da destruição das Conquistas de Abril, a recomposição dos grupos económicos do fascismo-salazarista na sua versão marcelista e a emergência de novos grupos económicos, a degradação social, económica e política a que Portugal tem sido sujeito pelos governos do chamado arco da governação que só timidamente foram travados pelo governo da geringonça.

São sobretudo os saudosos da primavera marcelista pronto a actualizá-la num formato pós-moderno, por manifesta impossibilidade de um retorno ao fascismo-salazarista.

Carlos Moedas, com outras e indisfarcáveis ambições políticas, tem a iniciativa de comemorar o 25 de Novembro, com um discurso sonso, manipulador e cobarde, típico do pequeno gauleiter que o habita, quando diz que quer comemorar uma data quando o seu objectivo real é menorizar enquanto não consegue rasurar o 25 de Abril. Congrega a malta de extrema-direita que ainda estaciona no PSD, alicia a direita do PS, dá destaque à IL, uma trupe de vigaristas políticos, engravatados e fragantes neo-fascistas, que elogiam as políticas económicas e sociais de Pinochet, leiam-se os artigos do seu fundador Carlos Guimarães Pinto e outros seus próceres na imprensa dos negócios, o que tem sido corroborado nos estudos do Instituto + Liberdade de que também é fundador, um grupo de falsários de todas as evidências políticas, sociais e económicas capazes de todas as manigâncias para fabricarem as mais elaboradas contrafacções.

É essa gentalha que organizou uma exposição a partir de uma mais que conhecida e reconhecida mentira da famosa farsante Oriana Fallaci, para se fingirem defensores de uma democracia, que só lhes interessa nos seus piores vícios a que, por todo o mundo, abre caminho aos avanços da direita e da extrema-direita a aproveitar a poltronice dos demo-liberais e de alguma esquerda desvalida, para gaúdio desses calhordas fariseus.

Não é um acaso estas comemorações do 25 de Novembro anteciparem-se ao ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril. O que de facto estas encenações pretendem é menorizar o que o 25 de Abril representou para Portugal, pondo fim à longa ditadura fascista-salazarista, e todos os avanços económicos, sociais e políticos que assumiu e executou o que muito os molesta, pelo nunca perdoaram aos militares de Abril e ao povo português o terem, como escreveu Sophia Mello Breyner Andresen, emergido da noite e do silêncio para habitarem a substância do tempo.

O que é incompreensível, inaceitável para essas larvas das térmitas que querem destruir todas as traves da democracia, que querem sair dos caixotes de lixo da história, enquanto se vão alimentando em estrumeiras mais insalubras que os estábulos de Augias. Há que os denunciar, há que os combater sem delongas nem hesitações.

Standard
Geral

A INVENÇÃO DA ESCULTURA

Hoje, dia 16 de Novembro, Jorge Vieira faria 101 anos. De raríssimos artistas se poderá afirmar sem contestações que mudaram numa determinada época as artes. Jorge Vieira é um desses artistas. A escultura em Portugal alterou-se com Jorge Vieira. Há um antes e um depois Jorge Vieira. Cada uma das suas obras ensina-nos a ver, ensina-nos a descobrir um mundo outro, ensina-nos que para lá do mundo de pouco real, que tantas vezes nos querem impor como único mundo possível, há outro mundo onde a imaginação, a inventiva o povoam de novos seres, de figuras, de coisas, acrescentando real ao real. Extraordinário é que esse outro mundo, parte indissociável do seu mundo, se confunde com si-próprio, é uma extensão do seu ser humano forte e imaginoso, habitado por um tranquilo e sábio desassossego. Corpo ancorado no chão em que as mãos laboriosas compreendiam e assimilavam o tumulto inteligente que o habitava.

É um escultor sem mestre com mestres de quem nunca foi discípulo. Os que encontrou na Escola de Belas Artes de Lisboa. Com os que procurou fora da ESBAL, António Duarte, Francisco Franco e António Rocha, desenvolveu uma actividade que incidia na pesquisa tecnológica. Mais tarde, em Londres, com Henry Moore e Reg Butler há um trabalho de conhecimento e aprendizagens que cruza com as colhidas nas viagens que tinha feito a França, Itália, Inglaterra. São trabalhos que apuram o seu imaginário muito pessoal em que se cruzam o abstraccionismo, o surrealismo e as esculturas dos primitivos da África negra, das Ciclades, dos Caldeus e Hititas que explora com uma liberdade bem livre na criação de formas que o situam num modernismo de uma modernidade em sentido amplo, que recupera e dá sentido ao quotidiano com as suas esculturas, todas as suas esculturas, qualquer que seja a sua escala e os materiais, geram sempre uma intimidade muito particular com os lugares onde habitam, sejam públicos ou privados, seja numa grande praça ou na intimidade de uma casa. É um imenso olimpo de figurações que celebram a vida no que ela tem de mais eterno com uma ritualidade pagã da alegria de viver exaltando o mundo na sua contínua transformação.

A esfuziante criatividade de Jorge Vieira constrói um percurso autónomo que se afirma enquanto instância particular socialmente partilhada onde se entrelaçam real e memória, ficção e telúrico, um percurso que tempestuou o quotidiano porque foi sempre inovador, foi sempre impar, porque esteve sempre com o seu tempo a questionar o seu tempo.

Ás suas qualidades de artista adicionava o ser um homem de intransigente verticalidade para quem a mediocridade era insuportável, que se distanciava dos fazedores de modas, da crítica de arte promotora de promoções, dos mentores de cosnciências. Um homem desta estirpe só podia ser um homem política e socialmente empenhado, um artista atento sempre inovador.

Jorge Vieira tinha a centelha de um génio humano demasiado humano onde cintilava a vibração metálica do sol. Tinha uma força bem terrena e uma ironia feroz que estilhavaça o senso comum, um olhar olímpico que radiofotografava o universo com uma energia sensual, tanto nas representações figurativas, com destaque para a mulher, como nas zoológicas com destaque para o touro, que adquirem novas anatomias, equilíbrios antes impossíveis, dinâmicas extraordinárias, como nas abstractas que aparentam esquematismos simbólicos, das pequenas peças às de grande dimensão como o Homem Sol no Parque das Nações, são todas e para sempre marcadas pelas metamorfoses oníricas, mágicas que são a singularidade da sua obra de uma alegria exultante.

(publicado em Avante!16 Novembro 2023)

Standard
Geral

UM PONTO DE (DES)ORDEM À MESA DO ESTADO DE SÍTIO

gravura de Bartolomeu Cid dos Santos, 1971

Em 50 anos de democracia a situação de Portugal tem-se progressivamente degradado com a corrosão dos direitos políticos, económicos e sociais empreendida pelos sucessivos governos do chamado arco da governação, PS, PSD, CDS. Hoje, com o apagamento do CDS surgem ainda mais à direita, a IL e o Chega, herdeiros, ainda que desiguais na forma mas não no conteúdo, de um neo-fascismo. Estavam dentro e fora dos estaminés do PSD e do CDS, arrastavam-se nas ruas da amargura da bastardia a que se obrigavam, esperando a oportunidade de sairem dos armários. As políticas de direita davam-lhes essa legitima esperança, finalmente cumprida, em linha com o que era e é cada vez mais frequente na Europa. É a expressão do triunfo do neoliberalismo no momento actual, com a consequente deterioração das sociedades, a sua brutal e crescente devassidão e degeneração, em que o odor da putrefacção é inumerável. São muitos e inegáveis os sinais de que esta sociedade, sem dignidade e sem nenhuma dignidade para oferecer, está cada vez mais decadente, mas essa decadência não prenuncia que no horizonte se perfile o seu fim próximo. Um adiamento promovido de múltiplas maneiras, tema para longos debates, em que uma das mais insidiosas é reduzir a vontade e a liberdade política da população à ida regular às urnas votando programas em que tudo se promete para quando se alcança o poder tudo se desmentir com grande desfaçatez. Em todas as campanhas eleitorais repetem-se os exemplos, talvez o mais recente e emblemático seja o de Passos Coelho que promete uma redução de impostos para depois fomentar a sua mais brutal subida, a par de outras malfeitorias. A outra face é a multiplicação de casos e casinhos que se por um lado os banalizam, por outro desenham a ideia malévola que rasoira os políticos e a política por uma bitola em que avulta uma descrença insidiosa vampirizada pela extrema-direita. A trivialização dos casos e casinhos faz que rapidamente sejam atirados para nevoentas incertezas escândalos de alto coturno. Muitos exemplos são coleccionáveis, escolham-se dois: nos pessoais o de Cavaco Silva ter em dois anos um lucro de 140%, num negócio de compra e venda de 250 mil acções, em conluio com o seu ex-secretário de Estado de Assuntos Fiscais, Oliveira e Costa, quando o BPN já se encontrava em falência e era o centro de fraudes financeiras, que foi tão normalizado que nem sequer foi inquirido. Nos institucionais as várias comissões de inquérito da AR em que pouco ou nada se discute do que é importante, gasta-se tempo e recursos em trivialidades que muito alegram a comunicação social e animam durante uns dias a malta em concorrência com gouchas, júlias & afins, como sucedeu recentemente com o folhetim TAP.

É neste ambiente deletério de continuada manipulação para que concorrem partidos políticos, não todos registe-se, com intervenções inúteis e indignações farsolas, a comunicação social estipendiada com a farandola de notícias e comentários, órgãos judiciais que abastecem o quotidiano com fugas selectivas, agora um comunicado da Procuradoria Geral da República que provoca uma crise política, adia o debate e a procura de soluções em questões nucleares com que Portugal se confronta como as da escola pública, do SNS, dos salários e pensões, dos privilégios concedidos à banca e às grandes empresas, da revitalização das pequenas e médias empresas que são o esteio principal da economia nacional, da agricultura submetida desde muitos anos às políticas da PAC, da subalternização da cultura, da questão demográfica e o corte interior/litoral, isto para não falar da miserável subserviência do ministério dos negócios estrangeiros às regras impostas pelo imperialismo desonrando o direito internacional.

No comunicado da PGR há um parágrafo que vale a pena citar para sublinhar a sua ligeireza: «No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente.»

Prova nenhuma, suspeitas substanciais nenhumas, exclusivamente uma invocação que inscrita num comunicado indiciando crimes de tráfico de influências a PGR sabia bem demais que iria provocar uma erupção vulcânica.

Para piorar e complexificar o panorama, o Ministério Público admite ter-se enganado apontando para António Costa, primeiro ministro, quando quem era referido deveria ter sido António Costa e Silva, ministro da Economia. Há quem, não são poucos dado o alarme pela perca de um protagonista principal da novela, desculpe o Ministério Público por as transcrições serem feitas por uma empresa ou entidades exteriores aos serviços da Procuradoria Geral da República. Esquecem-se que são validadas pelos procuradores e juízes que elaboram as acusações. Colocam de fora a PGR, desresponsabilizando-as dos erros dos seus subordinados, descuidando que Lucília Gago foi recebida pelo Presidente da República, naturalmente para esclarecer dúvidas e clarificar situações, imediatamente antes de António Costa retornar ao palácio de Belém para apresentar demissão. São equívocos excessivos em que os erros, ainda que involuntários, têm efeitos objectivos de enorme gravidade. Isso deve ser sublinhado.

Não se pode, muito menos se deve alinhar em teorias das conspiração de subversão política do Ministério Público, mas não se pode ser ingénuo a ponto de ignorar as estranhezas que muita da sua actuação configura desde há muito tempo. A primeira é a continuada violação do segredo de justiça que atiça julgamentos populares, denúncias fundadas e/ou infundadas de corrupção, com proveito para partidos políticos atascados em mentiras e/ou meias verdades que se aproveitam dessas fugas para incendiarem suspeições que antes de serem confirmadas são pasto de populismos de traços fascizantes. O que é surpreendente é que a PGR não estanque essa corroedora hemogarria, fazendo cismar que nisso tem estado muito pouco empenhada.

A segunda os arquivamentos por incompetência técnica, por não cumprirem prazos e os que provocam fundadas estupefacções como, entre vários outros, o das patacas que financiaram largamente as campanhas de Mário Soares e do PS, em que um fax de Macau leva à queda do Governador do território, Carlos Melancia, seu grande amigo, acusado de corrupção, que acabaria mais tarde por ser absolvido numa estranha decisão judicial onde foram condenados os corruptores mas não foram descobertos os corrompidos. Ou o dos submarinos e Paulo Portas em que subornos provados e sancionados no seu país de origem, a Alemanha, quando atravessam a fronteira portuguesa a PGR descobre que foram pagos a fantasmas, arquivando o processo. Ainda a lembrar os embrulhadíssimos casos de personagens do poder central e local, destaques para um Dias Loureiro, um Arlindo Cunha, um Isaltino Morais, um Duarte Lima, um Armando Vara, um Oliveira e Costa, um Sócrates, um Manuel Pinho, uns condenados outros a ficaram num limbo acusatório outros que ainda andam nas voltas e reviravoltas da justiça, todos envolvidos em negociatas fatelosas, em que muitas passam pelas malhas da teias da lei ou até são favorecidos por legislação em que os traços de promiscuidade entre os grandes escritórios de advocacia e o poder político são por demais evidentes.

A terceira, que tem o mais recente exemplo no comunicado desta semana sobre alegadas suspeições nos negócios do lítio e oxigénio verde, é como pode ser admissível que a PGR escreva um parágrafo com uma acusação vagíssima, que não acusa nada mas insinua perfidamente tudo, sabendo que haveria consequências políticas. A candura e o pudor não tem assento em nenhum escalão político ou judicial pelo que se é inaceitável a governamentalização do Ministério Público é igualmente inaceitável a judicialização do regime. Os exemplos, alguns bem recentes, que se colhem mundo fora devem fazer soar todos os sinais de alarme.

Indesmentível é que a situação de crise actual é um momento crítico de uma crise que se arrasta desde o primeiro governo constitucional por opções que favoreceram e favorecem os grandes grupos capitalistas, retirando ao Estado e entregando aos privados sectores estratégicos o que lhe confere o poder de serem esses grupos que de facto condicionam as opções políticas e sociais dos partidos que se alternam na governação mantendo no fundamental essas mesmas opções, reduzindo a política a uma trama onzeneira, a sucessivos festivais de política alive em que nos palcos sucedem-se vocalistas e agrupamentos com maior ou menor talento para atrair multidões, em que as canções estão formatadas praticamente decalcadas na forma e no conteúdo, com diferenças não substanciais para enganar a malta.

O contexto geral é a apropriação do Estado pelo sistema económico, o carreirismo político, das juventudes aos gerontes, a contaminar a classe política, as suas promiscuidades com os grandes empreendedores, o exercício da governação enquanto porta giratória, rampa de lançamento para o exercício de actividades bem remuneradas, as decisões políticas em linha com as agendas mediáticas, as manipulações eleitorais mais evidentes ou mais subliminares. Um catálogo vasto, pouco imaginativo de tão repetitivo.

Generalizada é corrupção ideológica espelho da corrupção endémica, típica do capitalismo, com séculos de experiências respaldadas em políticas simétricas que se dedicam a guerras de alecrim e manjerona, em tramas jurídicas que as legalizam, em manipulações para simular liberdades, em que a transparência é uma espessa cortina de fumo que oculta os segredos que, com regras ou sem elas, é característica das sociedades burguesas. Séculos de experiência que modernizam o edificado sem o destruir. O mais espalhafatoso desta folhetinesca comédia é o protagonizado pela direita e extrema direita que se apresentam à opinião pública como os grandes defensores da lei e da ordem, os campeões contra a corrupção que é o seu campeonato, sempre em grande alarido para não se ouça o seu trabalho de devassas térmitas que se alimentam das traves mestras da democracia, mesmo da democracia possível. É essa pradaria sempre a arder, com maior ou menor intensidade, que a actuação da PGR tem munido com actuações tantas vezes equívocas. É essa pradaria sempre a arder que consome as democracias formais, fogo que a comunicação social mercenária alimenta, a gerenciada directamente pelas oligarquias e a do chamado serviço público que comandam indirectamente (1) o que projecta um panorama inquietante em que os grandes beneficiários são a direita, a extrema-direita e também os socialistas e sociais democratas que decapitaram as suas esquerdas por mais volúveis e hesitantes que sejam, o que nos últimos decénios sucedeu por todo o lado.

O que é inquietante é assistir-se ao assalto ao poder protagonizado pela direita pelo PSD, pelo defunto CDS e pela extrema-direita a taberneira, caceteira, desvergonhadamente aldrabona, e a de colarinhos brancos sem rugas, perfumada pelas últimas fragrâncias que manipula com grande descaramento a realidade. Todos operacionalizam demagógicamente a corrupção, no que são apoiados pelo PS que com as suas práticas políticas com eles acaba por estar alinhado, o que é bem vísivel no entalanço político do PSD, nas votações na AR quando os temas são nucleares. Quem rejubila com esta situação são os nossos oligarcas, os maiores beneficiários da corrupção, a directa e a indirecta, a económica e a mental que a ela se associa e que instrumentalizam esses partidos sem ideologia, máquinas de caçar votos que, burlando sem limites, fazem a apologia da democracia fazendo-a confundir com a desses partidos em que a realidade partidária não corresponde aos ideais democráticos. Partidos que deixaram de ser instrumentos ao serviço dos eleitores, transformaram-se numa finalidade em si-próprios, prolongamentos do aparelho de Estado, representando interesses económicos que lhes dão apoio variável. São organizações eleitorais, sem definição nem mobilização ideológica, reduzem praticamente a sua actividade à conquista do voto porque a sua vitalidade dependente da captura do aparelho de Estado, o que representa um gravíssimo retrocesso democrático, político e ideológico.

Um estado de sítio que consolida a hegemonia neoliberal que nunca está satisfeita, que está sempre ao ataque, que aproveita todas as fissuras do sistema instituído para uma nova ofensiva que perverta ainda mais a já muito degradada democracia.

Esta democracia que se diz defensora dos valores civilizacionais de um ocidente que os consolidou em práticas coloniais estruturalmente racistas fede mais que os estábulos de Augias estrumando fascismos renascidos e renovados que a vai paulatinamente tomando de assalto perante a passividade até mesmo cumplicidade dos demoliberais de vários matizes agrilhoados nos parâmetros do neoliberalismo, da globalização e da financeirização da economia, em até já se assiste ao desplante de grandes empresas do universo digital e fundos abrutes se comportarem como senhores feudais impondo as suas leis que driblam e se sobrepôem a direitos nacionais e internacionais, não se contentando com o enorme poder que têm de controlar o poder político e de influenciarem essas leis.

Há que reconhecer que a situação actual é sufocante. Exige um empenhamento político, social, cívico em que não se colocando no horizonte próximo uma alternativa séria que refunda a democracia há que lutar no imediato para que esta democracia não se afunde mais no pântano, nas areias movediças em que caminha sem rumo nem esperança. Paralelamente a essas tarefas, as possíveis e necessárias dado o contexto histórico, a esquerda que luta e sabe que nenhuma realidade por mais consistente e hegemónica que se apresente é definitiva pelo que a dominação capitalista não é eterna, tem que se empenhar numa alternativa democrática mobilizadora da consciência cívica das massas populares. Uma esquerda que faça suas as palavras lúcidas de Manuel Gusmão: «tenhamos, entretanto confiança. O que foi possível uma vez na história, a irupção do futuro, nas lutas do presente, será possível outra vez»

(1) No mundo ocidental cerca de 90% da comunicação social, jornais, rádios, televisão, está na mãos de multimilionários. Em Portugal, é ver as listagens mensais dos tempos de antena nas televisões, atentar quem são os directores de informação, os editores, os redatores principais, os comentadores esmagadoramente de direita mesmo se admitirmos os que na lapela usam emblemas de esquerda e que de facto são de direita.

Standard
Geral

UM GENOCÍDIO EM MARCHA

Ao ministro da Defesa de Israel que afirmou que os palestianos são “animais com forma humana”, a Blinken que foi a Israel apoiar a punição colectiva dos palestianos que habitam Gaza e que se afirma ‘também como judeu” neto de alguém que escapou aos progroms na Rússia, não referindo que ocorreram em 1904, e ao padrasto que sobreviveu não a um nem a dois , mas a três campos de concentração nazis, Auschwitz, Dachau e Majdanek o que é um feito notável, embora se esqueça de agradecer ao exército vermelho da União Soviética que libertaram os três, a Ursula van der Lynden que, acompanhada por Roberta Metsola, deu luz verde ao genocídio que os sionistas e os ultra-ortodoxos do governo de Netanyahu se preparam para realizar depois de em janeiro de 2023 o ter anunciado subliminarmente afirmando que “o povo judeu tem um direito exclusivo e inquestionável a todas as áreas da Terra de Israel”, talvez para fazer esquecer que o seu avô era um alto oficial dos SS nazis, responsável por inúmeros crimes de guerra na Ucrânia, a todos os que se horrorizam, com toda a razão, com o ataque terrorista perpretado pelo Hamas no passado dia 7, relembrando que em 2007, Amos Yadlin, diretor dos serviços secretos israelitas dizia: “seria bom para Israel que o Hamas controlasse Gaza, para que o exército pudesse lidar com Gaza como um estado terrorista, desde que não controlem nenhum porto”, levantando a cortina que ocultava mal que o Hamas é uma criação israelita para tirar força e influência à Fatah e à OLP, bem como aos marxistas da FPLP e da FDLP, organizações laicas e de esquerda, mas também para aquela esquerda de gente gira progressista humanista sempre sempre tão empenhada nas lutas ditas fracturantes, que coloca no mesmo patamar vítimas e agressores, atirando para debaixo do tapete das suas vacilantes convicções o terrorismo de Estado praticado por Israel desde a sua fundação. A todos eles há que lembrar que o estado sionista tem o apartheid inscrito na sua constituição, pratica desde a sua fundação o terrorismo de Estado e a limpeza étnica. Há que lembrar a longa história de colaboração entre sionistas e nazis, o que sistematicamente é ocultado, que há que sempre que distinguir os judeus sionistas dos muitos judeus que vivem em Israel, na diáspora judaica e as vitimas do Holocausto que os sionistas e ultra ortoxos transformaram numa mercadoria.

A promiscuidade entre o nazismo de Hitler e o sionismo de Theodor Herzl, têm a mesma raiz ideológica. Hitler que afirmava e decretava a supremacia racial da raça ariana, que concretizou num dos piores massacres com milhões de vítimas em que se destacam os judeus, era um apoiante do sionismo que, por seu turno, pratica uma política segregacionista, de forma diversa mas igualmente condenável, na base da raça judia e da nação judia que já massacrou mais de seis milhões de palestinianos. A documentação é extensa, pouco ou mesmo nada referida. A Federação Sionista da Alemanha, em 1933, enviou uma declaração ao Congresso do Partido Nacional-Socialista em que afirmava que“um renascimento da vida nacional como o que está a acontecer na vida alemã (…) deve também acontecer na nação judaica. A base de um novo Estado Nazi deve também ocorrer na formação de um Estado Nacional Judaico. Com os princípios de um novo Estado Nazi fundado no princípio da raça, devemos enquadrar a nossa comunidade com natureza similar para que se possa estruturar e desenvolver uma Pátria Judaica”. A pátria judaica era Israel, nos territórios históricos de fronteiras redescobertos na leitura do Genésis. São muitos e bem documentados os textos que evidenciam como são ideologias análogas centradas na etnicidade e no nacionalismo. Os interesses entre o Nacional Socialismo da Alemanha Nazi e o Sionismo Judaico cruzam-se, interceptam-se. Hitler não os desdenhava, tinha entre os seus primeiros financiadores bancos maioritariamente de capitais judeus. A relação entre o sionismo, apartheid e nazismo tem longo historial que os sionistas hoje, empurrados pelos ventos da história, procuram por todos os meios ao seu alcance ocultar, no que são bastante eficazes, mas que é desmentido, contundente e diariamente, pelas suas práticas e pelos conúbios calhordas e sornas que plantam. Bastante eficazes mas sem poderem apagar nem escusar, ainda que sejam pertinazes em negar todas as evidências, que na introdução às leis raciais proclamadas pelos nazis em Nuremberga 1935, que anteciparam o Holocausto esteja escrito: “Se os judeus tivessem o seu próprio Estado, onde encontrariam o seu próprio lar, o problema judeu poder-se-ia considerar resolvido já no dia de hoje e pelos próprios judeus. Os verdadeiros sionistas são os que menos se têm oposto às ideias básicas das leis de Nuremberga, sabem que estas leis são a única solução válida para o povo judeu”. Nem rasurar o que Reinhardt Heydrich, chefe dos Serviços de Segurança das SS, depois nomeado Protector dos territórios checoslovacos incorporados no III Reich, escreveu em O Inimigo Visível: “Devemos dividir os judeus em duas categorias: os sionistas e os partidários da assimilação. Os sionistas defendem uma concepção de estado rigorosamente racial, mediante a emigração para a Palestina, prontos para construir o seu próprio Estado(…) Os nossos melhores votos e a nossa melhor boa vontade oficial para que o consigam”.

Nem que Eichmann, diretor dos departamentos incumbidos pela proscrição e outros “assuntos referentes aos judeus” era ideologicamente favorável ao sionismo, estabelecendo com eles acordos pontuais que os punham ao abrigo das deportações que comandava em que enviou mais de 1.5 milhão de judeus de toda a Europa para centros de extermínio de de assassinato em massa de judeus.

No momento actual em que está em marcha um genocídio em massa dos palestianos há que relembrar todos estes factos que, mesmo bem documentados têm sido sistematicamente ocultados, que a desculpa do terrorismo tem servido para justificar as maiores atrocidades ao longo dos tempos. Que Israel, respaldado pelos EUA e seus vassalos não cumpriu nenhuma das mais de 140 resoluções que o condenam como um Estado ocupante e desrespeitador dos direitos mais básicos daquele povo. A ONU e os demais defensores dos direitos humanos do jardim de Borrell não chegam nem à Cisjordânia nem a Gaza. O Holocausto dos palestianos continua a sua infame marcha. Condenar o terrorismo do Hamas e não condenar o terrorismo de Israel é a demonstração da dupla moral, da miséria ética dos chamados valores da civilização ocidental com raízes no colonialismo e no racismo estrutural.

Standard
Geral

Diálogo para uns, protestos para outros

A capa da edição de hoje do jornal “O Setubalense” é bem demonstrativa do que é o PS Setúbal.

Por um lado, querem impor cortes irresponsáveis na arrecadação da receita municipal, por outro, sentem-se obrigados a defender as políticas do seu governo que colocam em causa a prestação de serviços públicos essenciais às populações do concelho. Em última análise, podemos dizer que são coerentes na tentativa de colocar em causa os serviços públicos e o seu financiamento.

No concelho de Setúbal, o PS é o Partido mais votado da oposição.

Seria de esperar que tal facto se traduzisse numa responsabilidade acrescida para com as populações do concelho, assumindo um papel institucional e apresentado uma alternativa credível à gestão da CDU.

No entanto, o que a realidade vai demonstrando é que as insuficiências do PS são tão grandes que limitam a sua oposição a umas frases feitas, a propostas requentadas e à defesa, injustificada, do Governo.

Aliás, é fácil verificar nos discursos que, para o PS, tudo está bem em matéria de políticas governamentais em Setúbal: não temos problemas na saúde, na educação, na justiça, na economia ou, até, na habitação. E quando alguém exige respostas do governo, o PS corre a dizer que este é o tempo do diálogo, não do protesto pelo protesto.

Para o PS, ao governo, quanto muito, devemos dirigir umas perguntas e estar disponíveis para aceitar assumir todas as suas competências – aquelas que votaram ao desprezo, em prejuízo das populações deste concelho.

Ora, para este mesmo PS, tudo o que diz respeito ao município e às freguesias está mal e aqui já não é tempo de diálogo, é mesmo tempo para protestarem, mesmo que sem razão alguma para isso.

Dentro das poucas propostas concretas que se conhecem ao PS está a redução dos impostos locais, taxa de IMI e participação variável no IRS.

Para lá da irresponsabilidade de tais propostas, fica patente que no plano local o PS pouco se distingue de uma Iniciativa Liberal.

O seu discurso assenta na ideia de que a redistribuição de riqueza por via fiscal e o financiamento dos serviços públicos autárquicos constitui um esbulho.

A narrativa não anda longe daquela do “menos Estado, melhor Estado”, é só substituir Estado por município de Setúbal. Pois em relação à carga fiscal sobre os salários e pensões que constituem receita do Estado, nesse caso o PS não está disponível para a reduzir.

O PS tinha a obrigação de conhecer a estrutura da receita municipal no nosso concelho e reconhecer que os sucessivos incumprimentos da lei das finanças locais e do princípio constitucional da participação proporcional dos municípios nos impostos do Estado, contribuem para uma dependência dos impostos locais para o financiamento da atividade municipal.

Mas, o que o PS em Setúbal quer, não se coaduna com responsabilidade e seriedade institucional, o PS está apostado desde o início deste mandato em promover a inoperância da Câmara e na obstaculização de soluções para os problemas do concelho.

Face a propostas da CDU de redução progressiva e cautelosa dos impostos municipais de forma a não colocar em causa o frágil equilíbrio das contas municipais, o PS responde com o reafirmar da sua irresponsabilidade e as mesmas ideias que levaram o PS, à frente da gestão da autarquia até 2001, a conduzir o município ao descalabro financeiro.

As perguntas ficam feitas: podendo o PS em Setúbal escolher o caminho da criação de uma alternativa, afirmando-se através de uma oposição responsável, por que razão opta sempre pela via fácil do populismo, da defesa de propostas que colocam em causa as finanças e a prestação de serviços públicos municipais, beneficiando quem mais tem, em detrimento daqueles que mais dependem destes serviços para as suas vidas? Acreditam mesmo que ninguém está a reparar no facto de colocarem sempre a defesa do Governo PS à frente da defesa dos interesses do concelho de Setúbal e das suas populações?

Standard
Política

O que aconteceu ao BE?

(Wally Wood)

Ao assistir às sessões da Assembleia Municipal de Setúbal, surge uma dúvida: o que aconteceu ao BE?

Bem sabemos que a coerência ideológica não é coisa que abunde em tal organização e, muitas vezes, andam ao sabor da corrente mediática e daquilo que julgam ser o mais agradável de ouvir pelos eleitores.

Em matéria de questões internacionais, talvez por traumas do seu passado, o BE brinda-nos regularmente com posições alinhadas com o imperialismo.

Mais estranho, é no plano local alinhar diversas vezes com a direita, como aconteceu recentemente com a aprovação de uma recomendação da IL sobre “acessibilidade vertical” que, no essencial, estabelecia isenções temporárias de IMI aos proprietários que instalassem equipamentos como elevadores , plataformas elevatórias ou escadas elevatórias.

Ou seja, numa proposta que não tem em conta as condições económicas do proprietário do imóvel, que não coloca de parte a possibilidade de grandes proprietários ficarem isentos, que não distingue entre os custos incorridos com as diferentes soluções técnicas, que não parece ter base legal para o estabelecimento de isenções desta natureza, o BE preferiu votar ao lado dos que estão sempre disponíveis para reduzir as receitas públicas.

Aliás, em matéria de finanças locais e, em particular, do IMI, ao longo dos anos, temos verificado uma estranha sintonia entre o BE e a direita.

Mas, e o que dizer da intervenção do BE sobre a travessia do Sado, entre Setúbal e Tróia? Será mera ignorância ou pura má fé? Poderá o BE desconhecer a intervenção da CDU e da Câmara Municipal de Setúbal desde 2007? Será credível que tenha passado despercebido as diversas tomadas de posição que a CDU apresentou, quer na Câmara, quer na Assembleia (já agora, acompanhadas pelo voto favorável do BE)? E a intervenção do PCP e do PEV na Assembleia da República durante os anos desta concessão? E as propostas de financiamento do custo da travessia apresentadas pela Câmara? E as intervenções junto de membros do Governo, da APSS, da AML e da Atlatic Ferries, o BE também não deu por nada?

Como não me é possível acreditar que o BE desconheça tudo isto, a resposta está encontrada: mera ignorância não será, mas se quiserem refrescar a memória aqui fica uma ajuda.

Se as dúvidas ideológicas e o posicionamento do BE em relação aos impostos locais sobre imóveis decorrem da sua própria natureza, a tentativa ridícula de fingir que desconhece o trabalho realizado pelo Município e a CDU em defesa do direito à mobilidade no rio Sado já parece ter origem na má fé.

Fica, novamente, a pergunta: o que aconteceu ao BE?

Standard
Geral

É para rir?

Se não fosse trágico, era para rir. O PS diz que a crise habitacional no concelho de Setúbal é reflexo da ausência de uma política de habitação que resulta da gestão CDU.

Quem o afirma é o mesmo partido que fez um pacote legislativo à pressa para responder à falta de políticas e investimento em habitação pública que tem sido uma constante de todos os Governos do PS, que, como sabemos, é o partido que esteve mais anos no poder em Portugal nos quase 50 anos de democracia?

A crise habitacional só existe no concelho de Setúbal?

Nos concelhos governados pelo PS não há crise habitacional?

As gestões municipais em concelhos com a dimensão de Setúbal têm capacidade, não havendo políticas públicas de habitação, de resolver por si os problemas?

Uma boa parte dos bairros de habitação pública construídos em Setúbal não resultou de um programa especial, o Programa Especial de Realojamento, de um governo PSD, que permitiu que a Câmara avançasse com a construção de mais casas em resultado de uma política nacional?

Nem se percebe bem por que foram agora fazer o tal pacote, legislativo, mesmo contra a maioria das opiniões.

O melhor mesmo é rirmos…

Standard
Geral

BARBIE E O NEOLIBERALISMO

Barbie, com os seus artificiais e falsos dramas hedonistas, o seu feminismo padronizado, é a melhor e mais óbvia demonstração de como a luta ideológica se trava a todos os níveis.

Créditos/ D.R.

Nos finais dos anos 40, Theodor W. Adorno escreve dois ensaios, um deles em parceria com Max Horkheimer, A Indústria Cultural – O Iluminismo como mistificação das massas, (1947), e Crítica Cultural e Sociedade, (1949), em que se relaciona economia, política e cultura no mundo contemporâneo, se estabelece o conceito de indústria cultural, um sistema que funde cultura e publicidade, funcionando como um poderoso sistema de manipulação das massas. 

Com o decorrer dos anos e a degradação das artes e das letras, a sua actualidade é cada vez mais evidente. No seu tempo, com uma ainda incipiente televisão e sem redes sociais, apontam o cinema como uma das mais poderosas máquinas da luta ideológica essencial para a sobrevivência do capitalismo, também ele longe do seu estado actual.

Hollywood, instituída como a Meca do cinema pela quantidade e também pela qualidade de muitos dos filmes aí produzidos, ainda que muita crítica de modo complacente se tenha excessivamente deslumbrado, atribuindo qualidades até por vezes difíceis de descortinar em muitos dos produtos saídos dos estúdios californianos muitos deles estereotipados, recorde-se a sátira montada por Buñuel, que fez um manual em que se descodificavam esses arquetípicos, é o acabado exemplo dos conúbios entre cultura e publicidade, numa desde sempre activa frente de luta ideológica.

A generalidade da crítica e da história cinematográfica raramente, ou mesmo nunca, referem as revisões históricas e ideológicas promovidas pela indústria cinematográfica norte-americana que transformam em odisseia heróica a conquista do Oeste triturando transes pouco honrosos, o nascimento dos EUA com o genocídio dos povos índios e outros muito pouco recomendáveis sucessos em que se fundou o seu império agora em decadência, os êxtases com o sonho americano idolatrando as virtudes dos self-made man, o glamour da sociedade deixando quase intocados um materialismo sem limites e a ausência de ética, as revisões históricas mesmo as mais grosseiras como vender o Dia D como o dia da viragem na II Guerra Mundial, quando de facto essa alteração se deu com a derrota da wehrmacht na batalha de Kursk, em que o exército vermelho destruiu a força blindada alemã tornando-a incapaz de iniciativa militar, os inúmeros filmes sobre o Vietnam, com destaque para os invencíveis Stallone e Norris em exaltações heróicas que até fazem duvidar que o Vietnam do Norte tenha sido vitorioso, etc., etc…. Isto, enquanto nos mesmos estúdios ou em produções independentes se realizavam e realizam excelentes filmes que fazem contraponto mas são minoritários, rivalizando quase todos eles em qualidade estética com muitos dos filmes inscritos na matriz histórico-ideológica dominante. 

Muito menos se refere que nos últimos decénios, tal qual como nos outros géneros das artes e letras, as vinhas da ira foram praticamente secadas, vitimizadas pelas mais diversas geadas, das de direita pura e dura às das esquerdas pequeno-burguesas radicais. É o grande triunfo da guerra fria cultural, um subterrâneo muito frequentado e muito pouco referido. Não com menor importância, a indústria cinematográfica norte-americana instituiu o star system, que invade e contamina toda a cultura, do cinema às artes, da literatura à música, sistema que se degradou até aos famosos invadirem todos os cantos e recantos do quotidiano globalizado. São os mercados culturais mundializados em que os produtos ditos culturais explodem em rentáveis êxitos efémeros, as estruturas de produção concentram-se na amortização dos custos da fabricação de estrelas, em que a criação e a inovação estética e artística são subsidiárias atiradas para os aterros onde se confeccionam sucessos anunciados em fortes campanhas promocionais que impõem a colonização cultural anglo-saxónica na forma e internacional nos sentimentos.

Exemplo acabado desse estado de sítio é o recente filme Barbie, estreado no mesmo dia de Oppenheimer, o que é esclarecedor das estratégias de marketing dos produtores para quem os filmes são mercadorias que disputam bilheteiras e apontam às encenações dos Óscares. Um retrata os dramas pessoais do principal responsável pelo desenvolvimento da bomba atómica, no ano em que, no dia em que se assinala a sua primeira explosão em Hiroshima, tanto o secretário-geral da ONU, António Guterres, como o primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, tiveram o cuidado de nos seus discursos apagarem o país autor de tão ominoso e historicamente desnecessário bombardeamento. Essa rasura é um sinal a traço bem grosso do estado de sítio dos tempos actuais, que, em paralelo, faz saltar a Barbie da caixa em que estava fechada no seu mundo asséptico para os ecrãs adquirindo insuspeitadas qualidades. 

«A indústria cinematográfica norte-americana instituiu o star system, que invade e contamina toda a cultura, do cinema às artes, da literatura à música, sistema que se degradou até aos famosos invadirem todos os cantos e recantos do quotidiano globalizado»

A Barbie, café sem cafeína, coca-cola sem açúcar, cerveja sem álcool, amante assexuada, representante máxima das virtudes de um universo liberto dos seus perigos quotidianos mais vulgares, nas muitas versões que habitam o paraíso da Barbilândia, estava em vertiginosa queda de vendas. A Mattel, sua inventora e fabricante procura desesperadamente conter esse declínio tendo percebido que, nos novos contextos políticos, sociais e económicos, o melhor era encontrar quem produzisse e realizasse um filme publicitário para ser vendido como filme de autor, a ser aplaudido pela crítica incapaz de escavar para lá da superfície. Mesmo a que ainda tem alguma lucidez está tão contaminada que não se apercebe de como este luxuoso objecto pop é um dos paradigmas do capitalismo na sua fase actual, em que se investiram quase 150 milhões de dólares para ser produzido, mais de 100 milhões a ser divulgado, já ultrapassou os mil milhões em vendas de bilheteira.

Paralelamente, as vendas das bonecas cor-de-rosa invadiram, das grandes marcas têxteis ao pronto-a-vestir, das ementas de comida rápida estereotipada dos Burger King e Starbucks às parangonas e aos textos de plástico das revistas mundanas, as janelas nas redes sociais. Barbie ressuscitou alegremente. As críticas, mesmo as mais agudas, sofrem de tantos desvios ideológicos, cometem tamanhos erros de paralaxe que conseguem descobrir nesse objecto pop, não se sabe nem como nem porquê, uma crítica ao capitalismo.

Deixam-se surpreender pelo humor inteligente, o florilégio das cores, a banda sonora impressiva, as actuações das personagens, as supostas investigações sobre a condição feminina que a realizadora Greta Gerwig tem empreendido, que alcançaram o alfa e ómega com esta Barbie que parece ter passado por um processo emancipador de «dessublimação repressiva» de Herbert Marcuse e ser produzida pelas «máquinas de desejantes» de Gilles Deleuze, que a reconcilia com o feminismo, tornando-a inclusiva.

Paradigmática, a crítica de Clarisse Loughrey, no Independent, onde a classificou com cinco estrelas: «Embora seja impossível para qualquer filme de estúdio ser verdadeiramente subversivo, especialmente quando a cultura de consumo percebeu que a autoconsciência é boa para os negócios, Barbie consegue muito mais do que se pensa ser possível (…) é um dos filmes mainstream mais inventivos, imaculadamente elaborados e surpreendentes da memória recente — uma prova do que pode ser alcançado até mesmo nas entranhas mais profundas do capitalismo». Uma crítica que praticamente sintetiza o cacharolete opinativo de uma certa esquerda sempre pronta a classificar como moralistas, prescritivos, aborrecidos e de propaganda os raríssimos filmes que de modo directo ou oblíquo ainda têm como referência a luta de classes, essa coisa do passado em que a esquerda consequente insiste por não dar por eterno o princípio da dominação capitalista e o seu carácter histórico contingente mesmo quando parece ser consistente e hegemónica.

Não será um acaso a Mattel assediar desde 2009 os estúdios de Hollywood para que fosse realizado um filme sobre a Barbie. Não é um acaso terem decorrido uns anos a maturar a proposta, anos em que os videojogos ultrapassaram em investimentos de produção com lucros mais expressivos que o cinema, que a produção cinematográfica começasse a ser atomizada pelo streaming e os usuários se dispersassem nas experiências curtas e efémeras produzidas por eles próprios.

Neste quadro, em que o cinema político experimental, ainda uma experiência colectiva mesmo sendo uma mercadoria, agoniza a par do cinema independente, em que o cinema virou «um parque de diversões», como Martin Scorsese disse, é de anotar com muitíssima apreensão que seja um filme publicitário de propaganda a uma boneca assexuada a atrair multidões às salas de cinema.

Não por acaso, o projecto surgiu um ano depois da crise de 2008 em que coexistiam a grande crise económica e os movimentos feministas MeToo, com grande impulso nos EUA, propagando-se com várias variantes por todo o mundo. O truque foi libertar a Barbie da imagem feminina infantilizada por uma Barbie que entra para o mundo real. Uma das suas primeiras acções é promover a sua passagem de boneca a mulher, entrando nas batalhas de algumas feministas, Judith Butler na primeira linha, que defendem a dissociação entre género, sexo e sexualidade, em que o género se distingue do sexo biológico, o que para Nancy Fraser é reduzir o género a um artigo de consumo representando uma derrota do feminismo. Um largo tema para outro debate.

«Não por acaso, o projecto surgiu um ano depois da crise de 2008 em que coexistiam a grande crise económica e os movimentos feministas MeToo, com grande impulso nos EUA, propagando-se com várias variantes por todo o mundo.»

No filme, Barbie é apresentada como um ícone do feminismo, a caricatura de um mundo dominado pelas mulheres, ultrapassada a necessidade de recorrer a cotas, em contraponto com o machismo, como se a passagem do machismo para o feminismo tivesse algum efeito na raiz e no tronco desta sociedade, a não ser a pacificação do capitalismo em que todos de algum modo são barbies, o que do modo mais hipócrita, cínico e falso ilude desigualdades laborais, sociais, raciais, sexuais. 

A outra dimensão que se deve assinalar no filme, em que nada é novo nem original, são os inúmeros lugares comuns que se reportam a outros filmes. Excelente exemplar do que Jameson assinalou como típico da falta de imaginação da pós-modernidade enquanto pasticho de produtos anteriores da indústria cultural.1

Barbie, com os seus artificiais e falsos dramas hedonistas, o seu feminismo padronizado, é a melhor e mais óbvia demonstração de como a luta ideológica se trava a todos os níveis. É a lavagem rosa do feminismo Me Too, decorre a par das erupções do Black Lives Matter, das queer, das alterações climáticas transformadas num dos maiores negócios do século. São o grande espectáculo das lutas fracturantes, até importantes para as mudanças de atitudes sociais e comportamentais, mas inofensivas na luta para uma mudança social, económica e política de fundo. Utilizam um ilusionismo agressivo para consumo mediático, para dissimularem que deixam intactas as estruturas políticas sociais e económicas que são a razão de ser dessas formas de exploração remetidas para plano recuado pelos estardalhaços que ecoam no lixo da comunicação social estipendiada, nos produtos de todos os géneros das indústrias culturais, nas redes sociais, nos estereotípicos produzidos pela IA [Inteligência Artificial], na decadência das investigações académicas sobretudo das chamadas ciências humanas, em que as elites estão subjugadas ao poder para garantirem os seus privilégios.

«São o grande espectáculo das lutas fracturantes, até importantes para as mudanças de atitudes sociais e comportamentais, mas inofensivas na luta para uma mudança social, económica e política de fundo.»

Noam Chomsky é particularmente crítico dessas elites progressistas que se suicidaram: «os intelectuais progressistas auto-proclamando-se corajosos pretendem (até acreditam) criticar o poder e defender a verdade e a justiça, são os agentes da fé. Fixam os limites. Decidem até onde podem ir. Proclamam: “vejam como sou corajoso!”. Mas não tentam avançar nem um milímetro mais que eles. Os mais instruídos e cultos entre eles são os mais irredutíveis defensores do poder».2

Barbie é um dos mais acabados produtos do universo ideológico do neoliberalismo capitalista, um seu activo, uma sua transparente imagem. Um sublime descritivo da aliança e convergência entre Wall Street, Silicon Valley, Hollywood, na procura incessante do livre mercado para as empresas e a redução da intervenção do Estado, e os movimentos feministas, antirracistas, ambientalistas, LGBTQIA+, formas políticas e sociais que surgem com excitantes imagens emancipatórias, que substituem «o movimento pela acção» (Hemingway), e são largamente subsidiadas pelas fundações Open Society & Companhia. Uma aliança que Nancy Fraser e Rahel Jaeggi classificam como a característica dominante do capitalismo no seu estádio actual.3

Não radiografar a Barbie na sua dimensão ideológica, surfar pela sua superfície é um sintoma de como muita esquerda não se apercebe de como estamos a viver debaixo de um vulcão em que a indústria cultural é um detonador que degrada o humanismo e a humanidade por um poder que não recua em utilizar todo o gigantesco arsenal de que dispõe e que utiliza para se tornar omnipresente mas invisível. O perigo é não conseguir perceber essa dura realidade. Há uma esquerda, só a esquerda aqui nos interessa, incapaz de radicalizar a crítica à indústria cultural, o que é bem visível na permissividade das críticas à Barbie castradas do furor do olhar que Robespierre lançava ao pescoço de Maria Antonieta, que deveria renascer no olhar crítico a este universo que pinta de cor-de-rosa as lutas fracturantes. Não o fazer é compactuar com o mundo em que estamos a viver de onde a utopia, enquanto possibilidade do que ainda não foi possível, nos está a ser negada, procurando negar-nos mesmo a hipótese de pensarmos que é possível pensar uma sociedade outra. 

  • 1.Jameson, Fredric. Pós-Modernismo: a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, Ática, São Paulo, 2002
  • 2.Chomsky Noam, Quem Governa o Mundo?, Editorial Presença, 2016 / Os Senhores do Mundo, Bertrand Editora, 2016
  • 3.Fraser, Nancy / Jaeggi, Rahel, Capitalismo em Debate, Uma Conversa na Teoria Crítica, Boitempo Editorial, São Paulo, 2020
Standard